6.10.25

"Feios, Sujos e Malvados" - Ettore Scola (Itália, 1976)

Sinopse:
Roma, Itália. Giacinto Mazzatella (Nino Manfredi) vive em um barraco com sua esposa Tommasina (Zoe Incrocci), vários filhos e diversos outros parentes. Devido ao pouco espaço disponível, eles dormem praticamente um ao lado do outro. Giacinto guarda uma boa quantia em dinheiro mas, temendo ser roubado, sempre o mantém escondido. Isto irrita sua família, que não pode usá-la para melhorar um pouco de vida. A situação chega ao limite quando Giacinto leva para casa sua amante (Maria Luisa Santella), o que faz com que a família passe a planejar seu assassinato.
Comentário: Ettore Scola (1931-2016) foi um cineasta italiano. Ele estudou direito em Roma, passando depois ao jornalismo, ao rádio e ao trabalho como argumentista. Sua estreia como realizador deu-se em 1964, com a comédia "Fala-se de Mulheres". Seguiram-se outros filmes como "Nós Que Nos Amávamos Tanto" (1974), que ganhou o Prêmio César de melhor filme estrangeiro. Assisti dele apenas "O Baile" (1983). Desta vez vou conferir "Feios, Sujos e Malvados" (1976).
José Geraldo Couto da Folha SP nos conta que "'Feios, Sujos e Malvados' é um dos mais festejados trabalhos do italiano Ettore Scola. Ganhou o prêmio de direção no Festival de Cannes em 1976 e foi cultuado em seu tempo quase como um modelo de comédia de crítica social. Chamou atenção sobretudo por mostrar uma realidade miserável que não se localizava no longínquo Terceiro Mundo, mas na periferia de Roma: da favela em que se passa a história avista-se, ironicamente, a cúpula da catedral de São Pedro, no Vaticano. Os deserdados ao alcance da vista (e da indiferença) da Igreja Católica.
A ação é centrada num aposentado, Giacinto (Nino Manfredi), que vive com sua numerosa família e agregados num barraco imundo da favela. Ele vive o tempo todo acossado pelo medo de que seus parentes roubem o dinheiro que esconde desde que foi indenizado por um acidente de trabalho.
Em torno desse núcleo dramático, desfilam marginalizados de todo tipo: assaltantes, prostitutas, travestis, mendigos, aleijados, trambiqueiros, crianças de rua. Se há um grande mérito nesse trabalho de Scola, é justamente o de combinar o desenvolvimento dos conflitos dramáticos entre Giacinto e sua família com uma exposição quase documental de uma situação social extrema".
O que disse a crítica: César Barzine do site Plano Crítico avaliou com 2 estrelas, ou seja, ruim. Disse: "As tramas que se discorrem são desinteressantes, as interpretações estão próximas de causarem antipatia, e não há nada de complexo ou positivo a ser apontado no desenvolvimento de personagens daquela família. No final das contas, 'Feios, Sujos e Malvados' parece realmente se resumir a uma obra para não ser levada a sério. Suas reflexões são ofuscadas pelo tratamento recebido, fazendo com que, neste trabalho tragicômico, o lado cômico se sobressaia ao trágico, que, devido ao completo exagero, faz com que não saia ganhando nem um lado e nem o outro. Scola não soube sintetizar esses dois elementos, e o resultado é uma experiência enfadonha com uma boa premissa".
O site Cinema com Rapadura avaliou com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Escreveram: "Ettore Scola, ao fazer essa belíssima pérola do cinema universal, me mostrou, através do carregado humor-negro, que seus pobres, sujos e ignorantes personagens, mais uma vez, são corrompidos pelo dinheiro, e que as crianças, a quem depositamos a esperança de dias melhores, na verdade estão presas neste mar de lama de forma que, dificilmente, conseguirão perceber, algum dia, seus potenciais".
O que eu achei: Se na época do lançamento esse filme foi considerado bom - ganhou o prêmio de direção no Festival de Cannes em 1976 – atualmente ele seria considerado ofensivo. A forma como Scola retrata a comunidade onde vive o protagonista é grotesca, pegando todos os estereótipos relacionados às pessoas menos favorecidas e transformando isso numa caricatura de cidadãos "feios, sujos e malvados", assim como nos anuncia o título. É dessa suposta feiura, sujeira e maldade que Scola vai tentar extrair uma comédia que resulta mais num filme tragicômico com poucas ou nenhuma situação que, de fato, nos faça rir. Revisto hoje, ele revela suas inúmeras falhas. O protagonista, que representa um senhor já aposentado devido a um acidente de trabalho, possui uma maquiagem para simular envelhecimento que até eu faria melhor. A definição dos personagens secundários é confusa. O ritmo é frouxo. E há falhas técnicas notórias, como a evidente troca de um bebê real por um boneco no meio de uma cena, a dublagem das crianças extremamente mal feita e uma trilha sonora das piores que já ouvi. Apesar do talento de um ator como Nino Manfredi, nem ele salva o filme. Se em Rosselini e De Sica, a realidade mais sórdida possui a centelha do humano, aqui temos a mais absoluta falta de poesia ou empatia, resultando numa pretensa comédia que reúne assaltantes, prostitutas, travestis, mendigos, aleijados, trambiqueiros e crianças de rua num recorte onde só há sordidez, feiura e sujeira. Se a ideia era entreter e divertir fazendo a denúncia de uma situação social injusta, faltou traquejo. Ao fim, o que sobra não é reflexão nem humor, mas a incômoda sensação de que a miséria virou caricatura.

5.10.25

"Pecadores" - Ryan Coogler (EUA/Austrália/Canadá, 2025)

Sinopse:
Dispostos a deixar suas vidas conturbadas para trás, os irmãos gêmeos Fumaça (Michael B. Jordan) e Fuligem (Michael B. Jordan) retornam à sua cidade natal para recomeçar suas vidas do zero, quando descobrem que um mal ainda maior está à espera deles.
Comentário: Ryan Kyle Coogler (1986) é um diretor de cinema e roteirista norte-americano. Assisti dele o bom “Pantera Negra” (2018). Desta vez vou conferir "Pecadores" (2025).
Célio Silva do site G1 nos conta que "A trama é ambientada em 1932 e focada nos irmãos gêmeos conhecidos como Fumaça e Fuligem (ambos interpretados por Michael B. Jordan). Após uma temporada longe de casa, os dois voltam para sua cidade natal, Clarksville, no estado da Louisiana (...). O plano deles é deixar o passado para trás e começar um novo negócio, com uma casa de blues. Com a ajuda de seu primo Sammie (Miles Caton) e de alguns amigos, os irmãos buscam trazer diversão para os habitantes do local e, no processo, lucrar com a venda de bebidas. Só que, na noite da inauguração do clube, Fumaça e Fuligem recebem a inesperada visita do misterioso Remmick (Jack O'Connell), que tem intenções sombrias sobre a casa e todos que estão nela. Uma série de acontecimentos sinistros faz com que o laço que une os irmãos seja testado, ao mesmo tempo em que começa uma sangrenta batalha pela vida contra forças além da compreensão humana".
Alexandre Almeida do site Omelete publicou uma matéria interessantíssima contando a história que influenciou o filme. Ele disse que "em uma coletiva de imprensa que o Omelete participou em janeiro, o diretor de 'Pecadores' afirmou que o filme é 'sobre a música americana mais do que qualquer outra coisa'; e contou que ele e o Göransson fizeram o 'Caminho do Blues', no Mississipi, além de visitar a cidade natal de B.B. King. O início do filme, com cânticos gospel em uma igreja e músicos de rua na cidade onde [os personagens] Fuligem e Fumaça retornam para abrir seu juke joint, são a comprovação dessa jornada.
Os juke joint eram bares e espaços no limite das cidades, onde as pessoas negras podiam ir se divertir, dançar, apostar e beber clandestinamente durante a Lei Seca, que durou de 1920 até 1933. Eram espaços vistos como locais do pecado e do demônio pela sociedade religiosa cristã do estado, principalmente pelas mulheres que frequentavam as igrejas e viam os maridos indo curtir nesses ambientes. Quem tocava nesses bares? Os artistas de rua. Artistas esses que viajavam pelas cidades e tocavam nas ruas para tentar chamar a atenção dos donos dos juke joints, esperando um convite com mais dinheiro do que os centavos que ganhavam nas calçadas. Delta Slim, o músico de Delroy Lindo no filme é a encarnação dessas pessoas. Charley Patton, 'pai' do Delta Blues, um subgênero da região do Mississipi, é visto como herói por Sammy (Miles Canton).
Outro elemento que ocupa grande parte da história são os campos de algodão, e é de lá que parte uma 'disputa' de onde o blues surgiu. Os religiosos dizem que ele nasceu na igreja, no gospel, mas outros apontam que foi na lavoura que o estilo musical tomou forma com os violões e a gaita. De lá, os artistas partiam para tentar a vida nas cidades, assim como acontece com Sammy.
Nesse contexto há também uma das grandes histórias do blues: Robert Johnson, músico que era visto como um guitarrista/violeiro comum, para um ano depois voltar como um dos maiores de todos. A lenda diz que Johnson fez um acordo com o próprio diabo para conseguir todo o seu talento e a partir dali se tornou um dos maiores nomes do blues, mesmo tendo poucas músicas e vivendo apenas alguns anos depois do sucesso. Sammy segue estes mesmos passos.
Essa lenda, inclusive, pode ser explicada através do hoodoo, uma tradição espiritual do folclore afro-americano baseada em magia e personificada no filme por Annie (Wunmi Mosaku). No hoodoo existem histórias sobre encruzilhadas, criaturas que oferecem conhecimentos e rituais que dariam mais controle aos agraciados. Em um ambiente como o Mississipi, cheio de violência e onde afro-americanos poderiam ser linchados e mortos a qualquer momento por supremacistas ou apoiadores da Ku-Klux-Klan, o hoodoo era uma ideia de poder e conforto para aqueles que o seguiam. (...)
Quando Sammy se apresenta pela primeira vez no juke dos irmãos Fuligem e Fumaça, a música carrega os presentes em uma viagem que transcende o espaço e o tempo, juntando 'passado, presente e futuro' em um só momento. Usando um plano-sequência, Coogler passeia no meio de diversas figuras que comandam aquele transe da música, apresentando um guitarrista no melhor estilo de Prince ou Lenny Kravitz, junto com um DJ, figuras com vestimentas tradicionais de religiões de matizes africanas, tribais, chinesa - acompanhando o casal imigrante do país na história -, funk, soul, hip hop, Go-Go, tudo em um só lugar e em um só momento. Isso, claro, chama a atenção dos vampiros da história. Esse poder de união logo se torna alvo de Remmick (Jack O’Connell) e sua gangue, em uma referência sobre o apagamento histórico da cultura afro-americana.
Essas críticas até hoje se estendem, por exemplo, ao título de 'Rei do Rock' para Elvis, sendo que ele seguiu influências da igreja e de outros artistas da comunidade afro-americana do Mississipi e do rock.
A história dos EUA mostra que sempre existiu um movimento para esquecer os grandes expoentes da cultura negra no país, liderado por autoridades como o FBI na figura de seu diretor por 38 anos, J. Edgar Hoover. De líderes como Martin Luther King, Malcolm X e Medgar Evers e vozes como Sam Cooke, todos assassinados, até outros artistas que foram 'substituídos' por algum outro branco, esse processo foi amplamente financiado por setores do governo, que até hoje são acusados de continuá-lo.
Isso nos leva direto ao final do filme. Após a luta contra essas criaturas e uma possível salvação de Sammy pelo pai na igreja, a cena pós-créditos de 'Pecadores' nos coloca 60 anos depois, já na década de 1990, com o músico agora tocando em seu próprio bar de blues, em Chicago. Quem vive Sammy nessa parte da história - e uma das maiores surpresas do filme - é ninguém mais, ninguém menos que Buddy Guy, um dos maiores nomes da história do blues. Assim como Sammy, Robert Johnson e tantos outros, a história deles e do guitarrista continuam criando interseções. Buddy Guy também saiu de um campo de algodão e foi para Chicago na década de 1950. A plantação não dava mais certo para Buddy e ele queria viver da própria música. Lá, ele conheceu outro astro do blues, Muddy Waters, que o viu tocar em um bar e logo deu uma oportunidade para ele.
Ao colocar o próprio Buddy Guy como Sammy e suas cicatrizes no rosto após a luta contra os vampiros, Ryan Coogler estabelece uma conexão direta com a nossa realidade. Fuligem vampiro, visita o, agora famoso, Sammy para contar que ele foi protegido por um acordo entre os irmãos. Por meio da música, cultura e histórias populares, Coogler transcende o cinema tradicional de Hollywood para mostrar um senso de comunidade e respeito, em uma história repleta de astros, mas que nunca esquece da própria origem ou da resiliência da arte".
O que disse a crítica: Lucas Oliveira do site Cinematório avaliou com 3,5 estrelas, ou seja, muito bom. Disse: "Coogler parece preso demais a clichês ultrapassados do gênero, construindo homens misóginos e mulheres lascivas que soam anacrônicos às outras discussões tão contemporâneas que o filme levanta. Quando se liberta dos estereótipos do blaxploitation [contração das palavras black (negro) e exploitation (exploração), designa um filão de filmes destinados às plateias negras urbanas, no início dos anos 1970], então, o cineasta consegue conceber momentos muito mais multifacetados e criativos".
André Zuliani do site Omelete avaliou com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Escreveu: "'Pecadores' poderia ser descrito como dois filmes diferentes dentro de um único produto - e Coogler peca por isso, já que todo o arco dos vampiros parece deslocado, quase uma sombra do ótimo filme ambicioso sobre blues, racismo e misticismo que acompanhamos no início. Mas o diretor sabiamente reconecta os pontos no final, nos lembrando que 'Pecadores', acima de tudo, nos mostra como a música pode servir como um canal vivo para toda a dor e o prazer que unem um povo ao longo dos séculos. Em momentos como esse, o diretor afirma que os filmes, assim como as canções, ainda são capazes de crescer e nos atingir com o mesmo poder".
O que eu achei: Ambientado em Clarksville, no estado da Louisiana dos anos 1930, "Pecadores" (2025) é um mergulho poético e vigoroso na alma da música negra norte-americana. Ryan Coogler cria uma fábula poderosa que combina realismo histórico e imaginação sobrenatural, unindo o peso da segregação racial ao mito dos vampiros, numa metáfora contundente dos brancos que primeiro se apoderaram da força física dos negros e, depois, da sua cultura. Essa junção entre o mundo real e o fantástico é conduzida com precisão, revelando um diretor que sabe o que está fazendo. O filme é sobre o blues, mas não só sobre ele. Coogler transmite sua mensagem sem ser panfletário. Cada cena carrega emoção e peso simbólico, mas também uma musicalidade interna que faz o filme vibrar como uma canção de dor e redenção. A fotografia quente e granulada evoca o sul profundo dos Estados Unidos, enquanto o elenco oferece performances intensas. A trilha sonora de Ludwig Göransson é ótima, ainda que se possa lamentar que não tenha sido composta por um músico negro, algo que talvez reforçasse o sentido de pertencimento e herança cultural que o filme celebra. Ainda assim, há momentos de pura genialidade, como a cena em que passado, presente e futuro da música negra se encontram em um transe visual e sonoro de rara beleza. "Pecadores" é, assim, uma obra de grande força simbólica e estética, uma das mais inspiradas sínteses entre história, mito e música já vistas no cinema contemporâneo. Um forte candidato ao Oscar. Atenção à cena final que mostra o personagem Sammy já adulto, ele é interpretado pelo importante guitarrista e cantor norte-americano de blues e rock George "Buddy" Guy nascido em 1936 na Louisiana, conhecido por servir de inspiração para Jimi Hendrix e outras lendas dos anos 1960. Super recomendo.

4.10.25

"Kung Fu Panda 2" – Jennifer Yuh Nelson (EUA, 2011)

Sinopse:
 
Po vive seu sonho como o Dragão Guerreiro, protegendo o Vale da Paz, mas sua nova vida entra em risco quando um poderoso pavão planeja usar uma arma secreta para conquistar a China e destruir o kung fu.
Comentário: A franquia “Kung Fu Panda” gira em torno do atrapalhado Po Ping, um urso panda filho de um ganso, apaixonado por artes marciais, mais especificamente pelo kung fu. Ele quer se desenvolver na luta, mas não parece levar lá muito jeito já que como todo panda ele é gorducho e preguiçoso.
A saga começa em “Kung Fu Panda 1” (2008), a primeira animação da série. Estamos na China da antiguidade. Po trabalha na loja de macarrão da sua família e sonha em transformar-se em um mestre de kung fu. Seu sonho se torna realidade quando, inesperadamente, deve cumprir uma profecia antiga e estudar a arte marcial com seus ídolos, os Cinco Furiosos: um grupo de mestres composto pelos sábios Macaco, Louva-A-Deus, Víbora, Garça e Tigresa. Po precisa de toda a sabedoria, força e habilidade que conseguir reunir para proteger seu povo de um leopardo das neves malvado.
Neusa Barbosa do Cineweb nos conta que "Com a voz de Jack Black nas versões legendadas e a de Lúcio Mauro Filho nas legendadas, Po vive uma fase tranquila. O Vale da Paz parece pouco ameaçado e ele dedica mais tempo a disputas gastronômicas - como quantos bolinhos é capaz de engolir em alguns minutos - do que aos treinos.
O sossego acaba quando desponta no horizonte um vilão novo e muito poderoso - o pavão branco, Lorde Shen (Gary Oldman na versão legendada). De origem nobre, ele foi banido pelos pais quando descobriram suas intenções bélicas. Desde então, dedicou-se a formar exércitos de lobos a seu serviço, juntar todo o metal possível e, principalmente, tentar impedir o cumprimento de uma profecia que determina que Shen será vencido por um ser branco e preto. Adivinhem quem.
No primeiro confronto entre Po e os lobos de Shen, um ideograma misterioso visto pelo urso na roupa de um deles desperta memórias há muito adormecidas de sua primeira infância - o que prejudica momentaneamente sua concentração para a luta. A solução, diz o mestre Shifu (Dustin Hoffman, na versão legendada), é buscar paz interior. Po vai demorar um pouco para descobrir como se faz isso.
Até chegar lá, o panda e seus inseparáveis amigos, os Cinco Furiosos - Tigresa (Angelina Jolie), Macaco (Jackie Chan), Louva-Deus (Seth Rogen), Víbora (Lucy Liu) e Garça (David Cross) - vão ter muito trabalho com Lorde Shen, que construiu uma série de temíveis canhões, com os quais planeja dominar a China e eliminar o kung fu e seus mestres.
Além do vilão, há novidades também no time dos mestres do kung fu, o trio formado por Crocodilo (Jean-Claude van Damme), Rino Trovão (Victor Garber) e Boi Toró (Dennis Haysbert).
[O roteiro foi] assinado novamente pelos autores do primeiro filme, Jonathan Aibel e Glenn Berger, agora coprodutores. Houve também contribuições de peso, como do diretor mexicano Guillermo del Toro que aparece nos créditos como consultor criativo. Fora dos créditos, segundo a revista 'Variety', teria dado palpites também o roteirista e cineasta Charlie Kaufman (autor do roteiro de "Quero ser John Malkovich").
O estúdio Dreamworks demonstra que está no páreo para disputar espaço com a Pixar com esta animação de visual extremamente sofisticado, seja em termos de colorido e textura dos personagens, seja em termos de coreografia das sequências de luta, todas bem movimentadas e originais. Uma tendência que se apresenta neste segundo filme é o maior espaço dado à Tigresa. Além de representar um bem-vindo maior equilíbrio entre os sexos, a novidade também parece testar uma possível aproximação romântica entre Po e a Tigresa no terceiro filme da franquia que, pelo sucesso deste segundo, não deve demorar".
O que disse a crítica: Marcelo Forlani do site Omelete avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Disse: "Pode se preparar porque as lágrimas chegarão na conclusão. Não é aquela enxurrada dos desenhos da Pixar, mas o golpe da lágrima está lá e é preciso ser muito durão para resistir. Mas rola, então, o único porém do longa. Por que é que todos os filmes atuais não podem apenas existir um de cada vez? Por que é que tudo tem que ter um gancho para a próxima aventura? Ok, a pergunta é retórica, afinal nós já sabemos a resposta, mas mesmo assim não custa nada demonstrar a indignação... e depois respirar fundo e repetir 'paz interior... paz interior...'"
Darlano Didimo do site Cinema com Rapadura também avaliou com 4 estrelas. Escreveu: "Se o roteiro não é a principal arma, a direção compensa (em parte), com um ritmo alucinante que transforma os longas em um entretenimento passageiro de qualidade. E é isso que a segunda parte da saga do urso-panda Po é: acima de tudo um prazeroso passatempo. Dando pouco espaço para que o espectador respire, a animação sustenta-se em excelentes cenas de ação (que fazem bonito frente a obras live-action do gênero), sem esquecer de incluir pitadas de carisma em seu protagonista, característica que se destaca graças ao leve, mas simpático drama exibido".
O que eu achei: Em "Kung Fu Panda 2" (2011) a história já parte do ponto em que Po é o lendário Dragão Guerreiro, dispensando as apresentações e mergulhando direto na ação. O enredo gira em torno da ameaça representada por Lorde Shen, um pavão ambicioso que pretende conquistar a China e eliminar o kung fu com o poder de uma arma secreta. Com isso, o filme inteiro possui o ritmo de um verdadeiro thriller animado, com batalhas intensas e coreografadas de forma tão veloz e fluida que, em alguns momentos, o olhar mal consegue acompanhar. Apesar do foco maior na ação, “Kung Fu Panda 2” encontra espaço para um núcleo emocional interessante ao explorar o passado de Po. Os flashbacks sobre sua origem e o tema da adoção trazem uma dimensão mais sensível ao personagem, oferecendo momentos de pausa entre o turbilhão de combates e humor. Essa camada emocional, somada à excelência técnica da animação que conta com paisagens deslumbrantes e design visual riquíssimo, garante ao filme um charme próprio. Embora o primeiro longa da franquia ainda se destaque por sua originalidade e equilíbrio entre humor, ação e emoção, esta sequência mantém o alto nível de entretenimento e amplia o universo do protagonista com mais drama e profundidade. O resultado é uma continuação sólida, visualmente espetacular e com o coração no lugar certo.

30.9.25

"Twin Peaks" - Mark Frost & David Lynch (EUA, 1990-2017)

Sinopse:
A misteriosa morte de Laura Palmer (Sheryl Lee) na pacata cidade de Twin Peaks dá início a uma série de mistérios a serem desvendados pelo agente do FBI Dale Cooper (Kyle MacLachlan) e pelo xerife local Harry Truman (Michael Ontkean). Enquanto eles investigam, eles acabam percebendo que várias pessoas da cidade estão envolvidas e que segredos obscuros estão por trás do caso.
Comentário: O site Wikipédia nos conta tratar-se de uma mistura de drama, mistério e terror surrealista, criada por Mark Frost e David Lynch. A série estreou nos EUA na ABC em 1990, teve 2 temporadas, mas foi cancelada, retornando ao ar apenas em 2017 para uma terceira temporada no Showtime.
Ambientada na cidade fictícia de Twin Peaks, no noroeste do Pacífico, a série acompanha uma investigação liderada pelo agente especial do FBI Dale Cooper (Kyle MacLachlan) sobre o assassinato da adolescente local Laura Palmer (Sheryl Lee). A narrativa da série se baseia nas características da ficção policial, mas seu tom misterioso, a presença de elementos sobrenaturais e a representação exagerada e melodramática de personagens excêntricos também se inspiram em tropos de terror e novelas americanas. A trilha sonora foi composta por Angelo Badalamenti.
Como, além do seriado, foram lançados 2 longas-metragens, sugere-se a seguinte ordem para ver todo esse material:
1. "Twin Peaks" – Temporada 1 (1990)
A primeira temporada (1990) conta com 8 episódios e mostra a comunidade rural de Twin Peaks sendo abalada pelo assassinato da rainha do baile local, Laura Palmer, removendo a fachada de respeitabilidade que a cidade aparentava ter, revelando as tensões ocultas que fervem sob a superfície. O agente do FBI e o xerife se unem para começar as investigações.
2. "Twin Peaks" – Temporada 2 (1990–1991)
A segunda temporada (1991) conta com 22 episódios. Essa temporada resolve parte do mistério e leva a trama para caminhos mais estranhos e metafísicos, surgindo ameaças que fazem da cidade um lugar perigoso.
3. "Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer" (1992)
Como a temporada 3 só foi ao ar em 2017, David Lynch, em 1992, lançou um longa-metragem que é uma prequela do seriado com 134 minutos de duração mostrando a investigação do assassinato de Teresa Banks e os últimos sete dias na vida de Laura Palmer. O título original desse filme é "Twin Peaks: Fire Walk with Me".
4. "Twin Peaks: O Mistério" (2014)
Este longa de 90 minutos foi feito com cenas excluídas e filmagens alternativas do longa anterior. Com o título original "The Missing Pieces", ele funciona como uma obra complementar que pode agregar uma ou outra informação ao filme.
5. "Twin Peaks – The Return" - Temporada 3 (2017)
Daí finalmente, em 2017, temos a terceira temporada denominada "Twin Peaks: A Limited Event" ou "Twin Peaks: The Return" composta por 18 episódios. Ela é uma continuação direta da série que se passa 25 anos depois da 2ª temporada.
Além do seriado e dos longas, foram lançados os seguintes livros:
- "O Diário Secreto de Laura Palmer", publicado em 1990 após a exibição da primeira temporada de Twin Peaks. Escrita por Jennifer Lynch, a obra é narrada por Laura Palmer, aprofundando-se na vida da jovem;
- "A História Secreta de Twin Peaks", livro de 2016 escrito por Mark Frost que serve como uma prequel para a terceira temporada da série. A obra se aprofunda nos mistérios da cidade, assim como nas relações dos personagens, sendo uma espécie de ponte entre o final da segunda temporada e o início da terceira, além disso ele é todo construído através de recortes de jornais, relatórios, anotações e fotografias.
- "Twin Peaks: The Final Dossier", livro publicado por Mark Frost em 2017. A obra é uma continuação do livro anterior, servindo como um dossiê final e mais completo desse universo;
- "Twin Peaks: Arquivos e Memórias: Agora Podemos Voltar Ao Lugar Onde Tudo Começou", livro de 2017 do autor Brad Dukes, que reúne depoimentos dos criadores, dos atores e de membros da equipe, além de fotos inéditas da produção e curiosidades, contando a verdadeira história da pacata cidade madeireira escrita e pesquisada por um filho nativo;
- "Dale Cooper: Minha Vida, Minhas Gravações", livro de 1991 de Scott Frost que dá vida ao detetive Dale Cooper, tal como foi construído na série, mostrando sua personalidade enigmática e determinada, com o 'caso Laura Palmer' virando apenas mais um em sua carreira marcada pela obsessão em desvendar crimes insolúveis.
O que eu achei: Trata-se de uma série bem irregular do cultuado diretor de cinema David Lynch em parceria com Mark Frost. O seriado começa muito bem. A temporada 1 (1990) é sensacional, mostra o corpo da jovem Laura Palmer sendo encontrado na cidade interiorana de Twin Peaks e, com a mobilização do xerife local Harry Truman e do agente especial do FBI Dale Cooper começam as apurações. Enquanto eles saem atrás das inúmeras pistas, inclusive algumas que o agente do FBI recebe por sonho, eles vão percebendo que a cidade não é tão pacata assim pois seus habitantes têm segredos nunca antes revelados. A temporada 2 (1990-1991) é problemática. Ela começa bem, mas quando chega na metade ela desanda. Li que um executivo da ABC Entertainment, por conta de questões comerciais, começou a pressionar Lynch a dar uma resposta sobre quem matou Laura Palmer, algo que aparentemente Lynch não pretendia dar. Lynch, vencido, revela a identidade do assassino de Laura no meio da segunda temporada. Após essa revelação, a série fica desnorteada, com os demais episódios recheados por outros casos policiais que correm em paralelo à história principal, durando de um a dois episódios cada um desses casos. Sem surpresa, isso fez com que a audiência despencasse e o seriado foi cancelado. Após o cancelamento, Lynch lança por conta própria um longa-metragem chamado "Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer" (1992). O filme, que serve como uma prequela da série, é centralizado inteiramente em torno de Laura, sua vida e o assassinato brutal que deu início ao seriado. O filme é excelente, contando com a presença, inclusive, de David Bowie no papel de Phillip Jeffries. Por incrível que pareça, em 2017, 25 anos depois, o seriado é retomado. A temporada 3 denominada "Twin Peaks: O Retorno" é uma continuação direta da série, com os mesmos diretores no comando e com um grande número de atores do original agora bem mais velhos obviamente. Com total liberdade, essa terceira etapa é completamente diferente das anteriores pois Lynch rejeita a narrativa padrão que vinha sendo adotada e cria uma sequência mais parecida com seus longas, fugindo completamente do que seria esperado. Com isso o público teve uma visão dividida desta última parte. Os acostumados com o estilo Lynch de filmar gostaram, mas seu caráter experimental e muitas vezes incompreensível, não agradou a todos pois ele não dá as respostas claras que muitos esperam. De qualquer forma, "Twin Peaks" foi pioneira em misturar gêneros e apresentar uma narrativa não linear e experimental num seriado, abrindo portas para a complexidade evitada na televisão. Sua atmosfera onírica, hipnótica e perturbadora, criou um mundo peculiar deixando um legado importante na cultura pop.

29.9.25

“A Greve” - Sergei Eisenstein (URSS, 1925)

Sinopse:
O suicídio de um operário injustamente acusado de roubo é o estopim para o início de uma greve numa fábrica russa, em 1903. O lento processo de negociação expõe uma série de ações entre grevistas e polícia.
Comentário: Sergei Eisenstein (1898-1948) foi um cineasta letão dos mais importantes da história do cinema. Relacionado ao movimento de vanguarda da arte russa, participou ativamente da Revolução Bolchevique de 1917 e da consolidação do cinema como meio de expressão artística. Sua obra influenciou fortemente os primeiros cineastas devido ao uso inovador da montagem. Assisti dele a obra prima “O Encouraçado Potemkin” (1925), os excelentes "Outubro" (1927), "Alexandre Nevsky" (1938) e "Ivan, o Terrível” Parte I (1944) e Parte II (1958), além do curioso "Que Viva México!" (1932).
Desta vez vou conferir o primeiro filme feito por Eisenstein: “A Greve” (1925), um filme mudo composto por seis atos, feito quando o cineasta tinha apenas 26 anos de idade. Com uma abordagem didática, ele retrata as lutas ocorridas antes da Revolução de outubro de 1917, mostrando uma ocorrência datada de 1903 na qual trabalhadores de uma fábrica se unem contra a exploração e as injustiças em seu meio de trabalho.
Jesse Lisboa do jornal “A Verdade” nos conta tratar-se de um filme “que aborda a luta dos trabalhadores por seus direitos. Esse longa-metragem é um exemplo do cinema soviético da década de 1920, que tinha como objetivo retratar o cotidiano do povo e suas lutas, além de estabelecer referências de montagem no cinema.
O período que se seguiu à revolução de 1917 na Rússia foi marcado pelo Construtivismo Russo, uma iniciativa que defendia a ideia de que o cinema não poderia estar distante do povo, mas sim que deveria ser construído a partir de seu cotidiano. Assim, os cineastas soviéticos procuravam retratar a realidade de forma direta, pondo em questão a luta de classes e a recente revolução. A montagem era a principal ferramenta para a construção de um filme. A sequência de imagens, organizadas a fim de estabelecer relações de causa e efeito, era capaz de transmitir ideias complexas de maneira acessível. Sendo assim, a montagem era vista como uma forma de transformar o cinema em um recurso de agitação e propaganda.
‘A Greve’ é um exemplo dessa abordagem. O filme retrata a morte de um trabalhador, acusado injustamente de roubo, e a consequente greve organizada pelos trabalhadores. É importante evidenciar que o cenário histórico do filme é a Rússia pré-revolucionária, mais especificamente de 1903. O filme começa mostrando uma frase de Lênin, que diz o seguinte: ‘A força da classe trabalhadora é a organização. Sem organização das massas, o proletariado não é nada; organizado é tudo. Ser organizado significa unidade de ação, unidade de atividade prática’. Mais tarde, a narrativa do filme vai sendo construída a partir de uma série de imagens que mostram a opressão dos trabalhadores pela classe dominante e sua luta por seus direitos. A montagem é utilizada de forma a tornar explícita a ideia de que a greve é uma resposta à opressão sentida pelos trabalhadores.
O filme de Eisenstein utiliza metáforas visuais para enfatizar sua mensagem. As imagens dos animais, tão presentes em suas outras obras cinematográficas, são utilizadas aqui para representar a luta dos trabalhadores contra seus opressores. A imagem mais marcante do filme é a cena que fecha o longa, em que é comparado ao abate de um porco com a chacina dos trabalhadores grevistas. Nesta cena, o diretor propõe uma atmosfera de tensão e angústia, transmitindo a ideia de que a luta dos trabalhadores é uma luta pela vida.
Ao final do filme, a frase ‘Lembrem-se camaradas!’ é exibida, destacando o objetivo do filme de transmitir uma mensagem revolucionária para a população soviética, diante de uma recente revolução que pôs fim às antigas opressões do regime czarista. A mensagem final do filme expressa que a luta da classe trabalhadora é uma luta pela justiça e pela democracia proletária!”
O que disse a crítica: Luiz Santiago do Plano Crítico avaliou com 3,5 estrelas, ou seja, muito bom. Disse: “O fluxo de ideias, a inteligência na composição, plasticidade das cenas (os três diretores de fotografia do filme certamente tiveram um imenso trabalho para capturar as imagens) e o sentido final na mesa de edição fizeram deste filme (...) uma referência não só para o cinema soviético mas para o mundo todo. A obra é rica em sua concepção fílmica e o conceito de exibir uma ideia geral poderia facilmente sair vazia, mas não é isso que acontece. A fita cumpre o seu propósito. Existem exageros de concepção e retratação dos ‘atores históricos’, tanto de um lado quanto de outro, mas isto é apenas parte dos pontos interessantes para os quais podemos fazer a leitura e trazer à discussão e crítica. Em ‘A Greve’ temos o nascimento de um novo modelo de fazer cinema, bem como a origem de uma teoria de montagem que geraria inúmeros descendentes pelas décadas seguintes. Um filme de importância histórica em muitas dimensões”.
Geoff Andrew da Revista Time Out também gostou. Escreveu: “A história em si é simples: trabalhadores entram em confronto violento com patrões e policiais durante uma greve prolongada na fábrica, provocada pela demissão e subsequente suicídio de um deles. Mas os métodos de Eisenstein são complexos e extraordinários: sua decisão de fazer das massas, em vez de qualquer indivíduo, seu herói confere ao filme um alcance verdadeiramente épico; as caricaturas cruéis dos capitalistas burgueses proporcionam humor e uma manipulação emocional efetivamente poderosa; e a edição, rápida, fluida e extremamente precisa, fornece não apenas ritmo, mas uma miríade de significados metafóricos que vão muito além da mera propaganda”.
O que eu achei: Trata-se do primeiro filme feito pelo grande cineasta russo Sergei Eisenstein aos 26 anos de idade. O filme, que é mudo, foi dividido em 6 partes: "Na fábrica tudo está tranquilo" que descreve a vida na fábrica antes da greve, a opressão dos trabalhadores e a falta de condições de trabalho; "O motivo para a greve" que mostra a causa que leva os operários a organizar a greve e o começo da agitação; "A fábrica paralisa" com a greve se iniciando e a produção da fábrica sendo interrompida; "A greve é desencadeada" mostrando a greve se prolongar e a situação se agravar, com os trabalhadores enfrentando privações; "Provocação e desastre" mostrando os agentes provocando o caos e a violência entre os grevistas e, por fim, "Extermínio" mostrando a implantação de leis marciais e a extinção da greve através de atos de violência. A trama se passa na Rússia pré-revolucionária, numa fábrica em 1903 e, apesar de ser o primeiro filme do diretor, já é possível notar uma grande criatividade na montagem, marcando um momento decisivo de evolução do cinema. No elenco estão os atores do Teatro dos Trabalhadores do Proletcult, um movimento iniciado em 1917 que defendia a ideia da criação de uma nova cultura soviética, incluindo a defesa de uma estética marxista para as artes, uma estética de classe verdadeiramente proletária, livre de todos os vestígios da cultura burguesa. O resultado é um filme cheio de energia, sua edição dinâmica continua emocionante até hoje mostrando um conflito de classes não só pelo viés político, mas também por sua humanidade, transparecendo o brilho imaginativo do diretor. Uma pequena pérola dentro da história do cinema. Imperdível.

28.9.25

“Blitz” - Steve McQueen (Reino Unido/EUA, 2024)

Sinopse:
A história se passa durante os bombardeios de Londres na Segunda Guerra Mundial. Segue o pequeno George (Elliott Heffernan), um garoto de 9 anos, cujos dias pacíficos em Londres são interrompidos pelo caos do Blitz. Para proteger o filho, sua mãe Rita (Saoirse Ronan) o envia para o campo inglês em busca de segurança. Determinado a retornar para Londres e reunir-se com sua mãe e seu avô Gerald (Paul Weller), George embarca em uma perigosa jornada pelo interior da Inglaterra. Enquanto isso, Rita enfrenta o desespero e a angústia de buscar seu filho desaparecido entre os escombros da cidade bombardeada.
Comentário: Steve McQueen (1969) é um cineasta, produtor, fotógrafo e escultor britânico. Ganhou notoriedade com os longas "Hunger" (2008) e "Shame" (2011), ambos com o ator Michael Fassbender. Assisti dele o ótimo "12 Anos de Escravidão" (2003) que ganhou o Oscar de Melhor Filme. Assisti também ao mediano “As Viúvas” (2018). Desta vez vou conferir “Blitz” (2024).
O título "Blitz" diz respeito à campanha de bombardeamentos aéreos da Segunda Guerra Mundial em que a força aérea alemã (Luftwaffe) atacou o Reino Unido entre setembro de 1940 e maio de 1941, visando forçar o país a render-se. Os ataques atingiram várias cidades britânicas, com Londres sendo o alvo principal, causando milhares de mortes e destruição massiva de infraestruturas. Quem se interessar pelo tema pode assistir na Netflix um documentário chamado "A Grã-Bretanha e a Blitz" (2025) de Ella Wright que mostra em detalhes esse episódio da História.
O filme de McQueen utiliza esse contexto para nos mostrar a história de George, um menino de 9 anos, interpretado pelo ator mirim Elliott Heffernan, que será mandado temporariamente pela mãe para uma região mais segura através de uma operação governamental denominada "Operação Flautista de Hamelin" que, apesar de bem intencionada e muitas vezes bem sucedida, foi marcada por diversos problemas, já que essas crianças eram acolhidas em lares desconhecidos. Hoje se sabe que há até acusações de abuso de sobreviventes da época que ainda aguardam reparação.
O site Mixed Museum nos conta que a inspiração visual do diretor foi "uma fotografia do arquivo do Museu Imperial da Guerra. A imagem mostra um jovem evacuado de ascendência negra, mala na mão, pronto para deixar Londres rumo ao interior. Assim como tantas outras crianças durante a Segunda Guerra Mundial, o menino da foto havia sido enviado para viver com estranhos na Grã-Bretanha rural para escapar do pesado bombardeio das cidades britânicas.
Ocorre que, no filme, George é uma criança negra filha de uma mãe branca, interpretada pela atriz Saoirse Ronan. E esse é um ponto interessante que o site aborda. Baseado nas pesquisas de Chamion Caballero, Lucy Bland e Peter Aspinall vamos saber mais sobre a presença de pessoas mestiças na Grã-Bretanha em tempos de guerra, incluindo as famílias cujos filhos foram evacuados e cujas histórias foram amplamente obscurecidas pelas narrativas e interpretações da Frente Interna.
O site diz: "'Blitz', de McQueen, desafia essas omissões, não apenas ao centralizar a história em George – o personagem inspirado na fotografia – e sua família, mas também através dos personagens negros, asiáticos, mestiços e de outras minorias étnicas que o menino encontra ao longo do filme".
A pesquisa dos autores mostra que "Embora a Grã-Bretanha sempre tenha abrigado comunidades multirraciais, o início do século XX viu seu crescimento substancial, particularmente em algumas das maiores cidades portuárias britânicas. Muitos homens negros, asiáticos, chineses e árabes que lutaram pela Grã-Bretanha durante a Primeira Guerra Mundial, inclusive servindo como marinheiros mercantes, estabeleceram-se nos bairros portuários britânicos. Como cada vez menos mulheres negras, asiáticas, árabes e chinesas migrantes residiam na Grã-Bretanha naquela época, a maioria dos homens se casou e constituiu família com mulheres brancas locais – muitas delas de ascendência irlandesa –, bem como com mulheres mestiças britânicas.
Com o país sofrendo economicamente após a guerra, e com a chegada de homens brancos desmobilizados, a hostilidade contra os homens de outras raças cresceu, com a imprensa, os sindicatos e o governo culpando-os não apenas por 'roubarem' os empregos dos homens brancos, mas também 'suas' mulheres.
As tensões explodiram em 1919 e 1920, quando a violência racial contra os homens e suas comunidades – comumente chamada de 'distúrbios raciais' – eclodiu em nove cidades portuárias britânicas. Essa hostilidade social continuou ao longo da década de 1920, com mulheres brancas em relacionamentos inter-raciais também sendo atacadas – física e moralmente – por prejudicarem a 'superioridade' da 'raça', da nação e do Império britânicos ao se casarem e terem filhos com homens não brancos.
O problema era visto como generalizado, não se limitando apenas às docas. As casas noturnas de Londres foram criticadas por facilitar a miscigenação racial (em uma cena de 'Blitz', a mãe inglesa branca de George, Rita, é mostrada socializando em uma boate com Marcus, seu pai negro granadino – de Granada na África - e outros casais mistos).
A Tottenham Court Road, em particular, tornou-se uma obsessão para a imprensa, com manchetes a denunciando como o 'pior ponto de praga' de Londres, devido ao chamado 'perigo negro' que representava para as mulheres brancas. Inúmeros artigos denunciavam a 'colônia' de 'negros negros como carvão' que administravam cafés e casas noturnas, seduzindo mulheres com jazz e drogas. Esses homens, afirmava a imprensa, eram habilmente apoiados por chineses, que traficavam 'drogas' e também exerciam um 'fascínio misterioso' por mulheres brancas.
'O que é a 'isca amarela?', gritava o Western Daily Press sobre a suposta decadência moral causada pelos bairros chineses de Liverpool, Glasgow e Cardiff, mas principalmente pela 'cancerígena' Limehouse, no leste de Londres. Os relacionamentos inter-raciais, argumentavam os artigos, não eram apenas depravados, mas também causavam agitação social, principalmente devido ao crescente número de bebês depreciativamente chamados de 'mestiços'.
Na década de 1930, um pânico moral generalizado irrompeu sobre o perigo representado para a Grã-Bretanha devido ao que a imprensa chamava de 'ameaça' e 'perigo social' das crianças mestiças. Em todas as cidades portuárias, uma rede de indivíduos – de chefes de polícia a vereadores e cidadãos proeminentes 'preocupados' – criou grupos e encomendou relatórios para lidar com o 'problema', às vezes com o envolvimento do Ministério do Interior. (...)
Essa diversidade racial é frequentemente deixada de fora das narrativas da Frente Interna. McQueen, no entanto, faz várias referências a isso em 'Blitz', além da família de George. McQueen atribui um papel significativo a Ife, um guarda-florestal negro africano, baseado na história real de Ite Ekpenyon. Há muito tempo ele é considerado o único guarda-florestal negro da Grã-Bretanha; no entanto, recentemente descobrimos a história do pai de Kenneth Roberts, John Mathania Roberts, que serviu como guarda-florestal em Staffordshire.
McQueen também inclui uma série de personagens interpretadas por atores com ascendência racial mista. A personagem Doris, de Erin Kellyman, trabalha ao lado de Rita em uma fábrica de armamentos (lembrando as mulheres de Cardiff imortalizadas na foto 'Trouse Girls' de 1936). Celeste interpreta uma cantora de boate no estilo da artista britânica Evelyn Dove.
Steven Graham, Mica Ricketts e Christopher Chung fazem parte de uma gangue multirracial com a qual George se depara. O personagem de Chung faz alusão às antigas famílias anglo-chinesas de Limehouse. Enquanto isso, Graham, de ascendência negra mestiça, falou sobre a história de fundo de seu personagem, Albert, ter sido criado em um asilo vitoriano. Novamente, esta história tem raízes reais; a excelente bolsa de estudos da Professora Caroline Bressey revelou muitas histórias de crianças negras e mestiças que foram criadas no Dr. Barnardo's durante a era vitoriana. (...)
'Blitz', de Steve McQueen, traz essas histórias ocultas aos holofotes, mas o trabalho de descobri-las está longe de terminar. Arquivos estão repletos de relatos que desafiam o que acreditamos saber sobre o passado da Grã-Bretanha, relatos que merecem mais do que notas de rodapé. Mas é por meio da narrativa, seja em filmes, na escrita ou na história oral, que essas vidas nos são trazidas de volta com vivacidade".
O que disse a crítica: Daniel Oliveira do site Cinematório avaliou com 3,5 estrelas, ou seja, muito bom. Escreveu: "'Blitz' não é sem defeitos. O filme é estruturado numa montagem paralela entre as jornadas de George e de Rita, e a parte da mãe não é tão bem realizada quanto a do filho (...). Há também uma elipse um pouco estranha numa sequência fundamental no clímax do longa que, junto com o personagem de Dickinson e o flashback com a (breve) história do pai de George, sugerem que McQueen deve ter se digladiado com o filme na ilha de montagem e deixado muita coisa de fora. Ainda assim, a produção funciona, não se estendendo para além da conta nem querendo ser mais do que é, triunfando principalmente nos closes e na atuação estupenda do estreante Elliott Heffernan. O ator é um daqueles achados que só um cineasta do calibre de McQueen é capaz de encontrar e, no seu rosto expressivo e inocente, o cineasta escreve a história que quer contar: o momento em que a dita modernidade perde sua inocência, sua infância, dando lugar à tal pós-modernidade e a uma crise de identidade que a humanidade não conseguiu superar até hoje".
Mariano Ojeda do site Omelete avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Disse: "Com alguns personagens que colaboram muito com o desenrolar da história, das crianças que viram amigos circunstanciais de George, até Ife (Benjamin Clémentine) e Jack (Harris Dickinson), o soldado que ajuda Rita na busca por George, 'Blitz' mostra uma cadência excelente quase até o final, quando o drama fica maior que a história, quase transbordando-a. A construção até este momento é excelente, mas ele talvez seja excessivo para o encerramento".
O que eu achei: "Blitz" (2024) de Steve McQueen – diretor do aclamado "12 Anos de Escravidão" (2003) – nos presenteia com essa mega produção cujo título faz referência à palavra 'blitzkrieg', uma tática militar que consiste na realização de ataques rápidos e coordenados, com o objetivo de desmobilizar e derrotar um inimigo. O filme se passa na Inglaterra, local que foi alvo de blitz por parte dos alemães durante a Segunda Guerra Mundial. É nesse contexto que vamos acompanhar a saga de George, um menino de 9 anos cuja mãe, para tentar resguardar a criança dos perigos dos bombardeios, resolve embarcar o garoto num trem rumo ao interior. Essa operação de fato existiu, era um procedimento oficial denominado "Operação Flautista de Hamelin", uma forma de tentar preservar a vida dos pequenos em casas onde eles eram abrigados por outras famílias, encontrando um pouco de paz em meio ao caos de uma grande guerra. Ocorre que George não está nada satisfeito em ir morar com outra família, então ele, por conta própria, resolve voltar pra casa enquanto Rita, ao saber de sua fuga, parte em sua angustiosa busca pelo paradeiro do filho. O filme nos tira então do lugar comum de mostrar a guerra através dos olhos de soldados e, não só nos traz reflexões interessantes sobre esse episódio da História como também nos mostra um menino negro e sua mãe branca, tocando num ponto menos conhecido que foi o da miscigenação ocorrida na Grã-Bretanha durante a Primeira Guerra Mundial quando muitos homens negros, asiáticos, chineses e árabes estabeleceram-se nos bairros portuários britânicos, casando-se e constituindo família com mulheres brancas locais, o que gerou um forte racismo no país. O próprio menino George é mostrado inicialmente com dificuldade para assumir sua identidade enquanto fruto de uma relação interracial, só mais adiante, no filme, é que ele estabelece uma relação positiva com um policial de origem africana e se reconhece como sendo um menino negro. A crítica especializada ficou dividida com o resultado. Os que não gostaram assinalaram o tom melodramático do filme como principal defeito. Eu pessoalmente gostei bastante, até porque não vi nada de tão exagerado ou desproporcional nas abordagens. É um filme triste, lindo, uma aula de História, um retrato bem executado do que a guerra pode provocar nas nossas vidas.

27.9.25

"Echo in the Canyon" - Andrew Slater (EUA, 2018)

Sinopse:
O documentário explora a região de Laurel Canyon, na Califórnia, e sua rica cultura musical, analisando suas raízes nos anos 60 e alguns dos principais nomes que vieram da região para crescer no mundo da música.
Comentário: Richard Propes do site The Independent Critic nos conta que "O nascimento do som da Califórnia é o coração e a alma da estreia na direção de longas-metragens do ex-CEO da Capitol Records, Andrew Slater, o divertido e significativo 'Echo in the Canyon', um lançamento da Greenwich Entertainment (...).
Para quem não sabe exatamente o que significa 'o nascimento do som californiano', 'Echo in the Canyon'  se concentra na cena musical de meados e final dos anos 60 em torno de Laurel Canyon, uma área que, por esse breve período, serviu como o que poderia ser descrito como uma espécie de colônia para nomes como Beach Boys, Byrds, Mamas and the Papas, Buffalo Springfield e muitos outros.
Com Jakob Dylan atuando principalmente como apresentador e entrevistador principal do filme, 'Echo in the Canyon'  examina esse período conversando diretamente com aqueles que o criaram, incluindo nomes conhecidos como Brian Wilson, Roger McGuinn, Michelle Phillips, Graham Nash, Stephen Stills, Jackson Browne, David Crosby e outros. Jakob Dylan, vocalista do The Wallflowers e filho de Bob Dylan, obviamente tem familiaridade suficiente com a época para ser um apresentador bem informado, mas também é um apresentador carismático e envolvente que não parece se importar em ficar em segundo plano em relação aos artistas icônicos que entrevista. 
Para seu crédito, Slater, na maior parte do tempo, deixa a música e os músicos falarem em 'Echo in the Canyon'. Devo confessar que fiquei um pouco chocado no início do filme, quando a entrevista do falecido Tom Petty para o filme surgiu e imediatamente me encheu o coração com um forte sentimento de melancolia. Felizmente, a melancolia não é um sentimento forte ao longo do filme, nem qualquer sentimento de nostalgia. Slater claramente tem uma visão mais elevada para o filme e, na maior parte do tempo, consegue criar um filme que é perspicaz sobre o passado e consciente de como esse passado impactou o futuro.
Sendo parte do que era essencialmente uma colônia musical, os músicos apresentados no filme criaram algo especial, mesmo que tenha durado relativamente pouco. Com a ajuda de uma cena cooperativa de rádio e televisão, esses músicos criaram sons que tendiam a se sobrepor. Alguns podem chamar isso de roubo, suponho, mas era uma parte importante da natureza comunitária da música na época, e a música há muito tempo se tornou melhor por isso. A música estava realmente em algum tipo de transição, existindo em algum lugar entre os saudáveis ​​primeiros Beatles, mas não totalmente pronta para a psicodelia que estava por vir. Os Beach Boys estavam influenciando os Beatles, de fato, ao incentivar sua experimentação, e outros grupos estavam se juntando a esse senso de colaboração e experimentação.
'Echo in the Canyon'  entrelaça entrevistas envolventes e transparentes a essa paisagem musical, contando histórias sobre os instrumentos usados, os casos amorosos, as brigas que nunca se resolveram e muito mais. Juntamente com essas entrevistas, Slater adiciona imagens de shows, passadas e presentes, imagens de estúdio e uma riqueza de reinterpretações impressionantemente produzidas por artistas contemporâneos, incluindo Dylan, Regina Spektor, Cat Power, Beck, Norah Jones e, talvez a mais impressionante, Fiona Apple".
O que disse a crítica: O crítico John McDonald elogiou o documentário em seu site. Disse: "Havia um lado sombrio na era de paz, amor e compreensão que nunca aparece neste documentário, mas talvez esse aspecto tenha sido adequadamente abordado (...) em 'Era Uma Vez... em Hollywood', de Quentin Tarantino. A música pop é, afinal, a música da gratificação instantânea. Em dois minutos e meio, você pode extrair muito sentimento de músicas como California Dreamin' ou God Only Knows. Este filme não tenta ser abrangente, ignorando as partes problemáticas da história e retratando Laurel Canyon como um pequeno pedaço de paraíso musical. Como todas as visões do paraíso, é quase certamente um mito, mas o grande apelo dos mitos é que eles tornam a realidade muito mais palatável".
Graham Fuller do site The Arts Desk não gostou. Escreveu: "'Echo in the Canyon' é um documentário lamentavelmente superficial sobre a vibrante cena musical folk - rock que floresceu no bairro boêmio de Laurel Canyon, em Los Angeles, de 1965 a 1967. Embora contenha imagens vintage inestimáveis ​​dos Beach Boys, Byrds, Buffalo Springfield e Mamas and the Papas, além de entrevistas com alguns membros sobreviventes, estranhamente parece um veículo para Jakob Dylan".
O que eu achei: Do diretor iniciante Andrew Slater, que teve uma carreira musical diversificada, incluindo jornalismo, gestão artística e produção, antes de se tornar diretor executivo da Capitol Records, "Echo in the Canyon" reúne um conjunto impressionante de comentaristas para relembrar este canto ensolarado da música americana: a região de Laurel Canyon, na Califórnia. Ele reúne Eric Clapton, Brian Wilson, David Crosby, Jackson Browne, o falecido Tom Petty e muitos outros. Beck, Cat Power e Regina Spektor se reúnem em uma mansão para discutir o impacto da música, Jakob Dylan, filho de Bob Dylan, conduz as entrevistas e interpreta muitas canções de época. As histórias compartilhadas são sempre interessantes, embora as de Jackson Browne, David Crosby e Tom Petty sejam as mais impressionantes e memoráveis. O filme é lindo de assistir, tem uma pegada descontraída e alegre, é incrivelmente agradável e você provavelmente se pegará cantarolando junto em vários momentos. Vale ver.

23.9.25

"Os Boas Vidas" - Federico Fellini (Itália/França, 1953)

Sinopse:
 Em Rimini, o acomodado Alberto (Alberto Sordi), o galanteador Fausto (Franco Fabrizi), o intelectual Leopoldo (Leopoldo Trieste), o cantor Riccardo (Riccardo Fellini) e o mais jovem de todos Moraldo (Franco Interlenghi) formam um grupo que nada mais faz do que passar o dia em farras e conquistas amorosas. No entanto, esse modo de vida acaba para Fausto quando engravida a irmã de Moraldo (Leonora Russo).
Comentário: Federico Fellini (1920-1993) foi um diretor e roteirista de cinema italiano. Em uma carreira de quase cinquenta anos, Fellini ganhou a Palma de Ouro por “A Doce Vida”, foi indicado a doze prêmios Oscar e ganhou quatro na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira. No Oscar 1993, em Los Angeles, ele recebeu um prêmio honorário. Ele foi casado com a atriz Giulietta Masina. Assisti dele as obras-primas "A Doce Vida" (1960), "8 ½" (1963) e "Amarcord" (1973), os excelentes "Abismo de um Sonho" (1952), “A Estrada da Vida” (1954) e “Julieta dos Espíritos” (1965) e o curioso "Ensaio de Orquestra" (1978). Vi também o documentário "Os Palhaços" (1970). Desta vez vou conferir “Os Boas Vidas" (1953).
Luiz Santiago do site Plano Crítico nos conta que "Federico Fellini assumiu pela primeira vez a direção de um filme ao lado de Alberto Lattuada, em 'Mulheres e Luzes' (1950). Dois anos depois ele fez o seu primeiro voo solo, em 'Abismo de um Sonho', início interessante para uma carreira no cinema, trazendo uma história com elementos de fantasia, sonho, desejos e relações amorosas… além do delicioso toque metalinguístico, algo que o diretor sempre prezou e que traria à tona na maior parte de suas produções futuras.
'Os Boas Vidas' não estava na pauta de Fellini, quando terminada a produção de 'Abismo de um Sonho'. O roteiro que ele tinha escrito e que foi recusado pelo produtor era o de 'A Estrada da Vida', então taxado de 'muito sério' e escanteado pelo estúdio. Em contrapartida, foi oferecido ao diretor um orçamento para que ele realizasse uma comédia, desafio que ele enfrentaria ao lado de outros dois roteiristas, Ennio Flaiano e Tullio Pinelli.
'Os Boas-Vidas' teve uma acolhida absurdamente calorosa da crítica e do público, sendo indicado ao Oscar de Melhor Roteiro e vencendo o Leão de Prata no Festival de Veneza. A história de um grupo de amigos em uma cidade do interior trazia algumas lembranças caras a Fellini, algo que é ainda ressaltado pela presença de seu irmão no elenco, Riccardo.
De forma geral, 'Os Boas Vidas' mostra a vida adulta dos 'jovens da guerra'. Sem perspectiva ou vontade de emplacar um projeto familiar, esses adultos ociosos e vagabundos alternam um presente cheio de divertimento, bebedeiras, caminhadas nas madrugadas, carnavais, apostas e relacionamentos casuais, enquanto a idade passa e parece que o amadurecimento deles não acompanha essa passagem. Em dado momento do filme um dos personagens diz ao outro: 'nós precisamos casar', tendo em mente aí o poder do matrimônio como possível iniciador de uma vida de trabalho, compromisso e responsabilidade.
Mas para esse grupo, nem o matrimônio parece o início de uma nova fase da vida, basta atentarmos para o casamento de um deles e o modo como levava sua relação com a esposa, vivendo na casa dos sogros e praticamente entregando a criação do filho à família, enquanto sua preocupação essencial é sentir-se jovem, ter casos com diversas mulheres e viver como um solteiro boêmio.
Durante todo o filme - e essa é uma fala que aparece no desfecho, de maneira direta - aparece a possibilidade de deixarem essa cidade, irem para Roma ou outro lugar, onde um possível emprego ou a mudança de ares poderia mudar tudo. Mas apenas dois personagens conseguem livrar-se da comodidade do lugar e da vida fácil e sem muitos desafios.
Todavia, existe também o outro lado, o lado pessoal de cada um, a melancolia e angústia que paira em suas vidas, mesmo em momentos de diversão, como é o caso do carnaval ou o concurso de Miss, no início da fita. Embora rodeados de gente, os boas vidas vivem às voltas com seus interesses particulares, o evidente marasmo e inutilidade de suas existências, excetuando-se aí a personagem de Leopoldo, o escritor, que consegue ter sua comédia lida por um grande ator, mas que foge deste após segui-lo para uma região escura da cidade e julgar ser assediado sexualmente - a fuga é de uma inocência assombrosa para um homem com a idade de Leopoldo, que normalmente diria ao ator que não era homossexual e a coisa então se resolveria ali".
O que disse a crítica: Alexandre Agabiti Fernandez colaborador da Folha SP avaliou como bom. Escreveu: " Terceiro longa de Federico Fellini, "Os Boas-Vidas" (1953) é uma obra satírica, estudo de costumes de certo meio social que já traz os rudimentos do universo do cineasta, apresentado ainda sem a exuberância posterior. (...) Um dos pontos altos de 'Os Boas-Vidas' é a capacidade de Fellini em tornar próximos esses personagens, sem lances de efeito, psicologia ou grandiloquência. Um filme cômico com gosto amargo".
Robledo Milani do site Papo de Cinema avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Disse: "Fellini tem consciência dos atos de seus personagens, e não os perdoa facilmente. Riccardo (interpretado pelo próprio irmão do diretor, Riccardo Fellini) é o mais coadjuvante, enquanto Fausto (Franco Fabrizi, que assim como Leopoldo Triste – Leopoldo – e Alberto Sordi – Alberto – se tornaria parceiro frequente em outras obras do cineasta) é o que tem a trajetória mais destacada, envolvendo-se em uma confusão atrás da outra, mesmo após casado. Mas acompanhamos essas trajetórias quase que pela tangencial, de acordo com a posição de Moraldo (Franco Interlenghi), que é parte do problema e também da solução – ele é o único a quem resta alguma esperança. E assim como precisa decidir entre ficar ou partir, também nós somos levados a confrontar nossa inerente comodidade, em um filme sobre o nada que tem muito a dizer".
O que eu achei: "Os Boas Vidas" (I Vitelloni), de Federico Fellini, é um filme que me conquistou profundamente, não apenas pela sensibilidade e humor com que retrata um grupo de amigos à deriva em uma cidade do interior, mas também porque, sendo descendente de italianos, muitas das expressões, hábitos e pequenos gestos mostrados na tela me remeteram às memórias que tenho dos meus antepassados. Há algo de muito familiar na forma como eles falam, se reúnem, brigam e riem – um retrato que, para mim, tem sabor de nostalgia. O título original, "I Vitelloni", refere-se a uma expressão local que significa “alguém imaturo e preguiçoso, sem uma identidade clara ou sem uma ideia do que quer fazer na vida”. A tradução para “Os Inúteis”, em Portugal, e “Os Boas Vidas”, no Brasil, mantém-se fiel ao espírito do filme, que nos mostra esse grupo de jovens sem rumo, mas cheios de humanidade, contradições e sonhos nunca realizados. Fellini os observa com ironia e, ao mesmo tempo, com enorme empatia, criando um retrato que equilibra leveza e melancolia. Além disso, é possível ver aqui o embrião do grande cineasta que Fellini viria a se tornar. "Os Boas Vidas" tem aquele olhar atento para as pequenas grandezas e ridículos da vida, para os personagens que vivem à margem da ação heroica, e que, justamente por isso, revelam tanto sobre o mundo ao seu redor. Um filme belíssimo, cheio de humor e ternura, que consegue transformar a simplicidade do cotidiano em cinema da mais alta qualidade.

21.9.25

"April" - Dea Kulumbegashvili (Geórgia/Itália/França, 2025)

Sinopse:
Nina (Ia Sukhitashvili) é uma talentosa obstetra em uma maternidade no leste da Geórgia. Após um parto difícil, a criança morre, e o pai exige uma investigação sobre os métodos da médica. O escrutínio resultante ameaça trazer à tona a atividade paralela de Nina: dirigir pelo interior até as casas de meninas e mulheres grávidas para realizar abortos não autorizados.
Comentário: Dea Kulumbegashvili (1986) é uma cineasta e escritora nascida na Geórgia, um país situado na Europa Oriental. Assisti dela seu longa de estreia, o ótimo "O Começo" (Beginning), de 2020. Desta vez vou conferir "April" (2025).
Segundo Alexandra Ferraz do site IndieLisboa, "Depois de 'Beginning', o primeiro filme da cineasta georgiana Dea Kulumbegashvili que conquistou uma vitória histórica em San Sebastián (Melhor Filme, Melhor Realizadora, Melhor Argumento e Melhor Atriz), a expectativa era imensa e Kulumbegashvili maravilha de novo: com a sua segunda obra, 'April', arrecadou em Veneza o Prémio Especial do Júri.
O título do filme antecipa um simbolismo inexorável: Abril é o mês da renovação, mas também o mês mais cruel. Através de uma linguagem cinematográfica única e meticulosa, Kulumbegashvili filma a beleza rural da Geórgia, o florescer de árvores e a mudança das estações índices da jornada de autodescoberta da médica obstetra Nina; e mergulha o espectador no estado emocional da sua personagem principal, criando uma atmosfera claustrofóbica e imersiva, onde é tangível a tensão constante em que vive esta mulher que se recusa a ser silenciada pela sociedade patriarcal.
A mais recente obra cinematográfica de Dea Kulumbegashvili desafia convenções e faz uma reflexão profunda sobre o aborto e as ramificações que essa decisão representa, colocando em primeiro plano a autodeterminação do corpo das mulheres, luta que se revela constante e premente.
Produzido por Luca Guadagnino, 'April' é um filme verdadeiramente arrebatador que deixa uma marca indelével e convida o espectador a repensar a autonomia e o direito das mulheres em controlarem os seus próprios corpos e destinos".
O que disse a crítica: Christy Lemire do site Rober Ebert avaliou com o equivalente a 3,75 estrelas, ou seja, muito bom. Disse: "É o não dito que fala por si em 'April', muitas vezes em tomadas longas e isoladas que duram muito além do ponto de desconforto. Isso é especialmente verdadeiro durante uma cena em que Nina realiza um aborto na mesa da cozinha para uma adolescente surda-muda. A câmera se mantém firme no tronco da jovem e na mão direita que sua mãe segura para confortá-la. O fato de esse procedimento ser necessário em tal cenário soa tanto como um lamento de angústia quanto como um grito de guerra contra a sociedade. Mas também há beleza para ser encontrada aqui, seja um campo de papoulas vermelhas brilhantes, o cinza intenso de uma tempestade que se aproxima ou um céu rosa-púrpura antes do amanhecer após uma noite longa e difícil".
Robledo Milani do site Papo de Cinema avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Escreveu: "Enquanto o drama oficial se desenrola, entre investigações burocráticas e acusações que servem mais para tirar a responsabilidade de si e jogar no colo daquela que, enfim, acredita estar fazendo alguma (...) diferença, 'April' vai chegando ao fim. E Nina, pelo muito que esconde em si, por vezes incapaz de revelar estes segredos até para si mesma, vai se afundando num vazio crescente, fazendo dela mesma o monstro que a persegue. (...) Não será um filme que mudará o mundo. Mas talvez seja o passo necessário para que ao menos a discussão tenha início, e desse enfrentamento não se possa mais fugir".
O que eu achei: Por ter gostado muito do primeiro longa da cineasta georgiana Dea Kulumbegashvili – "Beginning" (2020) – me aventurei em encarar seu segundo filme "April" (2025) – que conta a história de uma competente obstetra chamada Nina que, após perder uma criança em um parto, é acusada de negligência, podendo ter sua vida revirada trazendo à tona sua atividade paralela: ajudar meninas e mulheres grávidas pobres do interior a realizar abortos não autorizados. Um ponto importante neste filme da Geórgia é que lá o aborto é oficialmente legal. Uma mulher pode solicitar a interrupção da gravidez até 12 semanas após seu início, mas, dada a veemência da oposição pública e política à prática, é improvável que encontre uma clínica que concorde em realizá-la. Trata-se, portanto, de um direito ilusório; sua ilusão de 'sim, mas não' é apenas uma das múltiplas maneiras pelas quais a vida das mulheres é restringida e limitada por um mundo que promete mais liberdade do que concede. O filme possui tomadas longas que duram muito além do ponto de desconforto. São imagens de paisagens com flores – afinal abril é o mês da primavera onde tudo renasce -, da chuva caindo ou de Nina fazendo algum procedimento. Muita gente nessas horas vai pensar em desistir, mas essas tomadas longas e paradas não são gratuitas e sim um retrato do marasmo local propositadamente criado para trazer desconforto. Há também no filme a figura de um 'monstro de lama', uma figura enigmática que aparece eventualmente e que representa a lama não só das estradas não asfaltadas onde, em dia de chuva, os carros atolam, mas especialmente a comunidade atolada no machismo, na misoginia e nos preconceitos religiosos e especialmente a vida da própria Nina que está atolada em problemas das mais variadas espécies. Caso você resista e siga em frente será presenteado com uma reflexão inteligente, íntima, visceral e comovente da sexualidade, do desejo, das pressões e repressões, dos condicionamentos e dos mandatos sociais. Assim como no longa anterior, Kulumbegashvili levanta questões perturbadoras sem trazer respostas tranquilizadoras, e supera com sucesso os desafios significativos que se propõe em um filme com múltiplas nuances. Um filme para ser visto sem pressa, com paciência e concentração. Boa pedida.

20.9.25

“Daguerreótipos” - Agnés Varda (França, 1975)

Sinopse:
O documentário é um retrato íntimo das pequenas lojas e lojistas da Rue Daguerre em Paris, uma rua pitoresca onde Agnés Varda morou por mais de 50 anos e que carrega o nome do famoso fotógrafo que inventou os primeiros dispositivos fotográficos: os daguerreótipos.
Comentário: Agnès Varda (1928-2019) foi uma fotógrafa e cineasta belga que se radicou na França. É considerada uma das precursoras da Nouvelle Vague. Seus filmes se notabilizam pela produção caseira e pela pesquisa de uma linguagem extremamente pessoal. Assisti dela o bom “Cléo das 5 às 7” (1962) e os documentários "Ulysse" (1982), "Os Catadores e Eu" (2000), "As Praias de Agnès" (2008) e "Visages, Villages" (2016) em parceria com o fotógrafo JR. Desta vez vou conferir o documentário “Daguerreótipos” (1975).
O historiador, cineasta e professor Charles Musser nos conta em seu site que Varda morou na Rue Daguerre desde 1951. Seu filho Mathieu nasceu nos anos 1970 a partir de uma gravidez de alto risco, principalmente considerando a época. Então filmar a rua onde ela morava permitiu que ela ficasse perto de casa e de seu novo filho - tema esse que tinha um componente doméstico e até mesmo maternal. Em uma narração, ela diz que as pessoas que ela filmou não estavam a mais de 50 metros da porta da frente de sua casa.
Ela e seu marido, o diretor Jacques Demy, eram parceiros próximos, embora não colaborassem juntos como cineastas. Eles, além de morar na Rue Daguerre, possuíam uma sala de edição que também ficava na mesma rua. É interessante observar o fato de que muitas das lojas também são administradas por duplas de marido e mulher e, em alguns casos, suas vidas parecem ecoar as de Varda/Demy. Os alfaiates, que fazem roupas sob encomenda, são mostrados cortando tecidos assim como Varda/Demy cortam seus filmes. Há também os cabeleireiros que têm lojas adjacentes, que compartilham uma porta para a rua: o marido cortando o cabelo dos homens enquanto a esposa corta o das mulheres. Talvez, como os cineastas, eles ora esperem, um tanto entediados e impacientes, pelos clientes, ora se dediquem a turbulências de trabalho intenso.
Este filme, como seria de esperar, é muito consciente e autorreflexivo. É um tanto clichê apontar que as vitrines têm como contrapartida o enquadramento da câmera e a tela do cinema. Quem está na rua olha pelas vitrines e vê os personagens do filme. Mas Varda vai um passo além e usa sua câmera para nos fornecer janelas para seus mundos: descobrimos onde nasceram, como os casais se conheceram e quando chegaram à Rue Daguerre. Conhecemos seus sonhos.
Da mesma forma, é importante saber que Varda era fotógrafa, além de cineasta. Ela provavelmente não foi parar na Rue Daguerre por acaso: que lugar melhor para um fotógrafo se estabelecer do que em uma rua que leva o sobrenome do inventor do primeiro processo fotográfico comercialmente bem-sucedido: Louis-Jacques-Mandé Daguerre (1787-1851)?
O nome do filme também funciona como um trocadilho com o nome daguerreótipo. Como Varda explicita em uma narração no final do filme, seus personagens são tipos típicos da pequena burguesia parisiense; mas seu documentário também nos oferece retratos fotográficos ou daguerreótipos como eram chamados na época do Daguerre. E embora o documentário seja um filme, em vários momentos os personagens de Varda posam para a câmera como se fosse uma câmera fotográfica de meados do século XIX, daquelas de captura bem lenta, assumindo poses formais e estáticas por vários segundos.
Musser também observa que a maioria dos retratados venha de lugares de fora de Paris, nascidos na Europa Oriental, na Argélia ou no sul da França, sugerindo que os daguerreótipos são algo mais do que um retrato rotineiro das tarefas diárias de Varda, mas sim um exame tácito dos limites que as pessoas percorrem para encontrar um lugar ao qual pertençam. Ela faz as mesmas perguntas a todos os lojistas - de onde você veio? quando chegou aqui? por que veio? - revelando que cada um passou por algum tipo de transição para chegar lá. Varda se consolidou ao longo da carreira como a padroeira dos outsiders no cinema e aqui fica claro como ela considerava essas histórias muito comoventes.
O que disse a crítica: Charles Musser achou bom. Escreveu: “Confesso que ‘Daguerreótipos’ ficou gravado na minha mente todos esses anos como uma conquista impressionante, o que não é uma opinião que eu necessariamente compartilhe com outros. O único livro sobre Varda em inglês, ‘Agnès Varda’, de Alison Smith (1998), menciona-o apenas de passagem. Dudley Andrew também tinha suas reservas, considerando-o uma obra menor (...). Do ponto de vista atual, pelo menos podemos ver o filme como uma antecipação dos estágios finais da notável carreira de Varda, já que elementos de ‘Daguerreótipos’ seriam reformulados em seu notável documentário ‘Os Catadores e Eu’ (2000), realizado cerca de 25 anos depois”.
Jesse Cataldo da Slant Magazine avaliou com o equivalente à 3,75 estrelas, ou seja, muito bom. Disse: “‘Daguerreótipos’ tem um título bonitinho e o resultado, a princípio, parece previsivelmente piegas: pequenos retratos de lojistas trabalhando, aconchegados em charmosas lojas especializadas ao longo de uma rua tranquila, com seus defeitos identificados e colecionados. Mas, como muitas das explorações temáticas semelhantes de Varda, o resultado é mais do que parece à primeira vista: uma antropologia casual com uma forte inclinação humanista, resultando em um filme movido mais pela compaixão do que pela curiosidade. E é essa compaixão que eleva o filme, garantindo que o retrato de Varda, típico de um livro de contos de fadas, nunca pareça pretensioso ou manipulador, mesmo quando ela transforma esses indivíduos em figuras de diorama, no que se torna uma investigação sobre o lugar do indivíduo comum: na vida, na comunidade e até mesmo no cinema. Os personagens que ela apresenta (...) recebem atenção total, parte de seu esforço contínuo para destacar figuras marginalizadas”.
O que eu achei: Agnès Varda nasceu em 1928 na Bélgica, mas em 1940, por causa da Segunda Guerra Mundial, sua família se mudou para Sète, uma cidade marítima na França. Em 1951, quando Varda se mudou para a capital para estudar história e fotografia na École des Beaux-Arts, ela morou na Rue Daguerre e permaneceu naquele bairro por mais de 25 anos. Para quem não sabe o nome da rua é uma homenagem à Louis Jacques Mandé Daguerre (1787-1851), um pintor francês, inventor do primeiro processo fotográfico comercialmente bem-sucedido que, ao invés de receber o nome de 'fotografia' passou a se chamar 'daguerreótipo', palavra que dá título ao filme. No documentário Varda retrata a vida de lojistas e moradores dessa rua, pessoas com as quais ela convivia no dia a dia. Por meio de uma série de vinhetas intimistas, ela explora as rotinas, histórias e relacionamentos de padeiros, açougueiros, alfaiates e outros pequenos empresários locais, oferecendo um registro delicado, sincero e autêntico de uma comunidade enraizada na tradição em meio à paisagem urbana em evolução. São lojas e pessoas que atualmente já não existem mais. A cereja do bolo são as simulações de "daguerreótipos" que Varda produz com sua câmera de filmagem. Numa espécie de reverência à Daguerre, ela pede para esses comerciantes posarem estáticos em frente à filmadora, assim como se fazia antigamente no processo de Daguerre cujo registro da imagem se dava muito lentamente. Esses "retratos" obtidos por ela são de uma poesia inenarrável, transformando o documentário numa reflexão existencial, uma meditação aberta sobre a natureza e o valor da arte e da vida. Imperdível.

15.9.25

“A Mulher na Lua” – Fritz Lang (Alemanha, 1929)

Sinopse:
Georg Manfeldt (Klaus Pohl) é um cientista que descobre a existência de ouro na Lua. Ao apresentar suas ideias à comunidade científica ele é desmoralizado. Vivendo no ostracismo ele possui um único amigo, o sr. Wolf Helius (Willy Fritsch), um industrial da aviação que acredita no cientista e quer levar suas ideias adiante. Ocorre que um grupo de empresários interessado no ouro contrata Walter Turner (Fritz Rasp) para roubar e chantagear Helius. Como se isso não bastasse, Hans Windegger (Gustav von Wangenheim), parceiro de Helius, toma conhecimento das pressões que Helius está sofrendo e acaba se juntando a eles nessa viagem à lua, na qual embarcam também o cientista e a astrônoma Fried Velten (Gerda Maurus), noiva de Windegger.
Comentário: Fritz Lang (1890-1976) foi um cineasta, realizador, argumentista e produtor nascido na Áustria, mas que dividiu sua carreira entre a Alemanha e Hollywood. É considerado uma das maiores figuras do cinema alemão, e o mais notável e proeminente diretor a emergir da escola do expressionismo alemão, juntamente com Friedrich Wilhelm Murnau, muito embora Lang tenha sempre negado qualquer relação com o movimento expressionista. Assisti dele as obras-primas "Dr. Mabuse – Partes 1 e 2” (1922), "Metrópolis" (1927) e "M, O Vampiro de Dusseldorf" (1931), os ótimos "Vive-se Só Uma Vez" (1937) e "Quando Desceram as Trevas" (1944), o mediano "O Segredo da Porta Fechada" (1947) e o curioso “A Morte Cansada” (1921). Desta vez vou conferir “A Mulher na Lua” (1929), baseado na novela de Thea von Harbou de mesmo nome.
Aldo Von Wangenheim da Universidade Federal de Santa Catarina - e curiosamente sobrinho-neto do ator Gustav von Wangenheim que trabalha no filme - nos explica que “O filme de 1929 ‘A Mulher na Lua’ (...) é considerado o primeiro filme de ‘hard science-fiction’, gênero bem mais tarde tornado imortal pelo ultraclássico ‘2001, Uma Odisseia no Espaço’ de Stanley Kubrick (1968).
Em um filme de ‘hard science-fiction’ cria-se um enredo onde é admitido um único item fantasioso (muitas vezes central para a trama, como no caso do ‘monólito’ de Kubrick) e todo o resto se atém o mais fielmente possível aos conhecimentos científicos vigentes na época em que o filme foi produzido. Essa ficção científica ‘séria’ tenta seguir o rigor científico ao extremo, explorando narrativas que são (...) cientificamente plausíveis, ao contrário dos filmes de fantasia como ‘Guerra nas Estrelas’, onde a liberdade criativa da narrativa é grande”.
Jorge Luiz Calife do site Diário do Vale escreveu uma matéria em 2017 comentando que “A Mulher na Lua” é a obra mais profética de Fritz Lang. O texto diz: “Sabem aquela contagem regressiva que antecede o lançamento de todo foguete moderno? 5,4,3… Não foi a Nasa que inventou, foi Fritz Lang que criou esse recurso para aumentar o suspense em seu filme, rodado nos estúdios da UFA, em Berlim. No ano de 1928. Em uma época em que não existiam nem aviões a jato, o cineasta alemão queria mostrar uma viagem à Lua com o maior realismo possível. Para isso ele contratou a consultoria do cientista Herman Oberth, que era um dos maiores especialistas em foguetes da época.
O filme é um melodrama, que envolve um triângulo amoroso durante uma viagem ao espaço. Mas os detalhes técnicos ainda impressionam noventa anos depois. O enorme foguete, de três estágios, é montado verticalmente em um grande hangar. E se desloca sobre uma plataforma móvel até o local do lançamento. Exatamente como o Saturno 5, que lançou a Apollo 11 em 1969, quarenta anos depois. E a separação dos vários estágios, durante a subida, é exatamente como acontece hoje em dia, nos foguetes modernos.
Mas Lang pagou um preço caro pelo realismo do seu filme. Quando Hitler subiu ao poder sua polícia secreta, a Gestapo, mandou confiscar todas as cópias do filme, por acreditar que ele revelava os segredos da tecnologia de foguetes da Alemanha. Tecnologia que foi usada para criar o míssil balístico V-2, usado para bombardear a Inglaterra. Até o belo modelo da espaçonave Friede foi confiscado e destruído durante a guerra.
Durante décadas os amantes do cinema só conheceram uma versão reduzida de ‘A Mulher na Lua’. Uma versão editada (...) distribuída nos Estados Unidos”. A versão original que possui 3h30m só surgiu depois de finalmente encontrarem uma cópia em um clube de cinema de Buenos Aires.
O que disse a crítica: Do site Plano Crítico avaliou com 3,5 estrelas, ou seja, muito bom. Ele disse que o clima do filme é “essencialmente aventuresco” e que, apesar de boa parte da trama se passar na Terra, “as viradas são bastante efetivas para plantar as resoluções que primordialmente funcionam como o tal mote para o recomeço que o filme tanto acredita. De novo, a inocência acaba se reverberando, desta vez na figura feminina, como símbolo quase angelical para promover de forma ainda mais clara as novas descobertas como libertação da ânsia conflituosa de nossa natureza. E no amor da ciência, Lang nos faz acreditar nessa fantasia”.
O site Palavras de Cinema avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Escreveram: “Entre maquetes e cenários curiosos, Lang constrói uma obra que não cai em excessos. (...) Por outro lado, Lang leva o material a sério e contra a ciência perigosa lança personagens carregados de emoção, às vezes até infantis. O excesso de sentimentalismo não se dá ao acaso. O cinema mudo não permite que ele se perca em palavras bobas: está tudo no olhar (...)”.
O que eu achei: Trata-se de um filme mudo, feito na Alemanha, com duração de 2h48m (originalmente tinha 3h30m), do mestre do cinema Fritz Lang, autor de obras como "Dr. Mabuse” (1922), "Metrópolis" (1927) e "M, O Vampiro de Dusseldorf" (1931). Embora sua longa duração pudesse sugerir algo arrastado, "A Mulher na Lua" (1929) revela-se uma obra surpreendentemente dinâmica, dividida em três partes bem distintas: o primeiro terço, na Terra, apresenta os personagens e o projeto da viagem; o segundo, a jornada espacial; e, por fim, a chegada e a permanência na Lua. O que impressiona é como Lang, em pleno cinema mudo, consegue criar uma narrativa de ficção científica envolvente, mesclando aventura, romance e um certo suspense em torno da exploração espacial. A atenção aos detalhes técnicos - fruto de uma pesquisa cuidadosa - torna a experiência ainda mais fascinante, principalmente ao lembrar que o filme foi feito décadas antes da corrida espacial se tornar realidade. Visualmente, o filme é um espetáculo. Os cenários e efeitos especiais, embora datados para os padrões atuais, possuem uma inventividade que mantém seu encanto quase um século depois. E a história, bem estruturada, prende a atenção em todas as etapas, sem jamais perder o ritmo. Assim como Georges Méliès já havia surpreendido à todos com seu curta "Viagem à Lua" (1902), em "A Mulher na Lua", Fritz Lang prova ser um visionário, capaz de unir entretenimento e reflexão num mesmo filme. Para quem aprecia o cinema mudo e as origens da ficção científica no cinema, esta é uma obra indispensável.

14.9.25

"Better Man – A História de Robbie Williams" - Michael Gracey (Reino Unido/ EUA/China/França/Austrália, 2024)

Sinopse:
 
Cinebiografia do cantor britânico Robbie Williams (Jonno Davies/Robbie Williams) mostrando a história da ascensão, a queda e a ressurreição inesperada do cantor, que hoje é consagrado como um dos artistas britânicos mais vendidos de todos os tempos.
Comentário: Michael Gracey (1997) é um cineasta australiano que começou sua carreira trabalhando com efeitos visuais, videoclipes e publicidade. Ele é mais conhecido por dirigir os filmes "O Rei do Show" (2017) inspirado na vida do empresário circense americano Phineas Taylor Barnum e "Pink: All I Know So Far" (2021), um documentário sobre a cantora e compositora norte-americana Pink. "Better Man - A História de Robbie Williams" (2024) é o primeiro filme que vejo dele.
O site GShow nos conta que "A escolha de retratar Robbie Williams como um chimpanzé em sua cinebiografia tem chamado a atenção do público. 'Better Man - A História de Robbie Williams', (...) narra a trajetória do artista desde sua infância e revela a forma como ele se vê: um macaco performático.
Nascido em Londres em 1974, Robbie Williams iniciou a carreira aos 16 anos no grupo Take That, uma boyband britânica que vendeu mais de 50 milhões de cópias em apenas cinco anos de existência. O cantor lançou sua carreira solo em 1995 e se tornou um dos maiores nomes da música pop com hits como 'Feel', 'Rock DJ' e 'Angels', que ganhou uma versão brasileira na voz do grupo KLB.
A canção 'Sexed Up' foi um sucesso especial no Brasil como tema do casal Marina (Paloma Duarte) e Diogo (Rodrigo Santoro) na novela 'Mulheres Apaixonadas'. A obra também ganhou uma versão interpretada por Leonardo com o título 'Eu Sei Que Te Perdi'.
Apesar de todo o sucesso, Robbie se sentia como um macaco de circo durante o auge da fama: era vigiado e pressionado a entreter o público. A revelação inspirou o diretor Michael Gracey a usar computação gráfica para transformar o ator Jonno Davies, intérprete de Williams, em um chimpanzé. O resultado garantiu a 'Better Man' uma indicação ao Oscar 2025 de Melhores Efeitos Visuais.
Com um olhar único para a vida de um ídolo pop, o longa promete emocionar o público com um espetáculo que passa pela montanha-russa dos altos e baixos que o astro britânico viveu em seus 35 anos de carreira".
O que disse a crítica: Nathalia Jesus avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Disse: "Se você é fã de Robbie Williams ou aprecia filmes que exploram os altos e baixos de figuras públicas de maneira criativa, 'Better Man' é uma boa pedida. Inclusive, é um filme tão honesto que não permite que o cantor seja visto somente pela ótica romântica aplicada em produções cinematográficas que contam com seus biografados na produção - porque, sim, o cantor está envolvido diretamente na obra, mas nem por isso ele é retratado como um mocinho defendido incondicionalmente pelo roteiro. No entanto, se o que você busca é uma biografia mais tradicional e coesa, que explore as profundezas emocionais do personagem sem distrações, pode ser que o filme deixe a desejar".
Caio Coletti do site Omelete avaliou com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Escreveu: "O roteiro assinado por Gracey com os estreantes Oliver Cole e Simon Gleeson acerta em cheio ao fazer dos altos e baixos da vida do popstar britânico (...) uma espécie de ode às incongruências da instituição da fama como a conhecemos desde meados do século XX. Narrativamente, 'Better Man' abraça o amor absurdo que temos pela celebridade, a validação que encontramos no aplauso do outro, o anseio insaciável que nutrimos por ouvir que somos especiais, que somos alguém, que nossa identidade existe também nos olhos de quem nos vê".
O que eu achei: Trata-se da cinebiografia do cantor e compositor Robbie Williams. O diretor Michael Gracey, que já se dedicou anteriormente a retratar o empresário circense americano Phineas Taylor Barnum e a cantora e compositora Pink, desta vez resolveu contar a vida deste cantor que se tornou um expoente da música pop da Inglaterra. Numa narrativa linear que obedece à cronologia dos acontecimentos, o longa parte de sua infância e segue rumo à atualidade, mostrando desde sua vida junto a sua mãe e avó, seus atritos com o pai, seu envolvimento com as drogas, seu ingresso na boyband Take That até culminar na sua carreira solo. O curioso do filme é que como o diretor ouviu uma declaração do próprio cantor dizendo que ele se sentia como um macaco de circo – pelo fato de ser vigiado e pressionado a entreter o público – ele resolveu transformar o ator Jonno Davies, intérprete de Williams, em um chimpanzé. A computação gráfica foi tão bem feita que o longa foi indicado ao Oscar de Efeitos Visuais. Essa alteração foi o pulo do gato para tirar a cinebiografia do lugar comum. Então não espere ver o próprio Robbie Williams em cena ou algum galã o representando. O máximo que você terá dele será a voz que não só narra a história como também dubla o primata. Mesmo que você não seja fã do artista, "Better Man" vai te fisgar e te prender até o fim. É um filme diferente, estranho, divertido, um truque que tinha tudo para dar errado, mas que deu super certo. Vale ver.

9.9.25

"Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer" – David Lynch (EUA/França, 1992)

Sinopse:
O agente do FBI Chet Desmond (Chris Isaak) e seu parceiro Sam Stanley (Kiefer Sutherland) investigam o assassinato da garçonete Teresa Banks (Pamela Gidley), em uma pequena cidade do estado de Washington. Após descobrir uma pista do misterioso crime, Chet desaparece a alguns quilômetros da cidade de Twin Peaks. Um ano depois, outra morte parece estar conectada a este acontecimento: o assassinato de Laura Palmer (Sheryl Lee), uma adolescente viciada em drogas que vive seus últimos dias entre indecisões amorosas que a levam a alternar como amantes dois colegas de escola: o problemático Bobby (Dana Ashbrook) e o introspectivo James (James Marshall).
Comentário: David Lynch (1946-2025) foi um diretor, roteirista, produtor, artista visual, músico e ator norte-americano. Conhecido por seus filmes surrealistas, ele desenvolveu um estilo cinematográfico próprio. Assisti dele: a obra-prima "O Homem Elefante" (1980), os ótimos "A Estrada Perdida" (1997), "Cidade dos Sonhos" (2001) e "Império dos Sonhos" (2006), o bom “Veludo Azul” (1986), o mediano "Coração Selvagem" (1990), os curiosos "Eraserhead" (1977) e “What Did Jack Do?” (2017) e o não tão interessante “Duna” (1984). Assisti também às temporadas 1 e 2 do seriado "Twin Peaks" (1990-1991) feito em parceria com Mark Frost.
O longa é uma prequela da série de televisão "Twin Peaks" que foi ao ar inicialmente nos anos 1990 e 1991. Como a série foi cancelada por falta de audiência devido a desentendimentos de Lynch com um executivo da TV, Lynch resolveu aproveitar a história desenvolvida no seriado – sobre o assassinato de uma jovem moradora da cidade americana de Twin Peaks – para fazer esse longa que se passa temporalmente antes do seriado.
Nele vamos ver como começou a investigação do FBI sobre o assassinato de Teresa Banks (Pamela Gidley) – ela é citada no seriado - e, em seguida, vamos saber como foram os últimos sete dias da vida de Laura Palmer (Sheryl Lee), uma estudante popular, porém problemática, do ensino médio.
O site Wikipédia nos conta que embora a maior parte do elenco [do seriado] tenha reprisado seus papéis no filme, muitas cenas relativamente leves com moradores da cidade foram cortadas. Além disso, o astro principal da série, Kyle MacLachlan (Dale Cooper), pediu que seu papel fosse reduzido, e a personagem Donna Hayward, interpretada por Lara Flynn Boyle, não quis prosseguir, então foi substituída por Moira Kelly.
Sherilyn Fenn (que interpretava Audrey Horne no seriado) e Richard Beymer (que fazia o papel de Benjamin Horne) também não quiseram participar do filme. As ausências foram inicialmente atribuídas a conflitos de agenda, no entanto, Fenn acrescentou em 1995 que não quis retornar porque "estava extremamente decepcionada com a maneira como a segunda temporada saiu dos trilhos".
"Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer" estreou no Festival de Cinema de Cannes de 1992 na competição pela Palma de Ouro. O filme foi notoriamente polarizador: Lynch disse que o filme foi vaiado em Cannes, e a imprensa americana em geral o criticou. O filme foi controverso por sua representação franca e vívida do relacionamento entre pai e filha, sua relativa ausência de personagens favoritos dos fãs e seu estilo surrealista. O filme foi um fracasso de bilheteria na América do Norte, mas se saiu melhor no Japão e na França. Devido à má recepção, os planos para uma sequência foram [a princípio] abandonados.
Lynch e Mark Frost [que dirigia a série junto com Lynch] só receberam financiamento para produzir uma terceira temporada da série de TV bem depois desse filme, em 2017. E apenas em 2019, o British Film Institute reviu o longa e o classificou como o quarto melhor filme da década de 1990.
O que disse a crítica: Renato Cabral do site Papo de Cinema avaliou com 2,5 estrelas, ou seja, regular. Disse: "Um tanto repudiada pelos fãs mais fervorosos do diretor, a produção começa quando dois detetives recebem a missão de investigar a morte de Teresa Banks, ela que tinha um estilo de vida similar ao de Laura. De uma hora para outra, porém, Lynch decide esquecer a investigação de Teresa para entrar no mundo de Laura. Não existem grandes sutilezas, o diretor pouco se importa com pontos soltos ou em retornar mais à frente aos personagens da trama inicial. É uma introdução desleixada da parte de Lynch, já que ele não a desdobra ou a explora da melhor forma possível. Não são cenas de uma apresentação gratuita, mas, vistas no geral, acabam soando enfadonhas e mal trabalhadas".
Luiz Santiago do site Plano Crítico avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Escreveu: " A nossa sorte é que mesmo diante do caos, há informações valiosas fornecidas ao público da série, porém, quem nunca viu o programa simplesmente estará diante de um enigma. Este é um filme para iniciados e isso faz dele uma porta de entrada para a discussão de alguns mistérios de 'Twin Peaks'. Pena que a intenção inicial, de ser um 'primeiro contato' para novos espectadores, não tenha sido alcançada. A despeito disso, a obra ainda é uma marca interessante na filmografia de David Lynch".
O que eu achei: David Lynch, com seu talento inconfundível para transitar entre o onírico e o perturbador, entrega em "Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer" uma obra que transcende a simples ideia de um filme derivado de série. Realizado logo após o cancelamento da segunda temporada do seriado "Twin Peaks" (1990-1991), o longa não é um epílogo, mas um mergulho visceral naquilo que a televisão apenas insinuou: a tragédia íntima e sufocante de Laura Palmer, figura central do mistério que cativou milhões de espectadores. É fundamental assistir às duas temporadas do seriado antes de encarar o filme, pois apenas assim é possível compreender toda a carga emocional e a complexa rede de simbolismos que Lynch orquestra aqui. O filme, em vez de responder a todas as perguntas deixadas pelo seriado, aprofunda-se no terror psicológico e na atmosfera de pesadelo, mostrando sem filtros a espiral de desespero e vulnerabilidade que levou Laura ao seu destino fatal. A direção de Lynch brilha ao equilibrar momentos de beleza melancólica com explosões de horror surreal. A fotografia de Ron Garcia e a trilha sonora hipnótica de Angelo Badalamenti contribuem para uma imersão total, transformando a história de Laura numa espécie de lamento trágico envolto em mistério e dor. Sheryl Lee, no papel de Laura Palmer, oferece uma performance extraordinária, carregada de emoção e intensidade, que amplia tudo o que sabíamos sobre a personagem. Se na série Laura era um enigma, aqui ela ganha vida, humanidade e um peso dramático raramente visto em personagens antes apenas idealizados pela narrativa. Mais do que um complemento ao seriado, "Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer" é um capítulo essencial para compreender a obra de David Lynch como um todo. É um filme que desafia o espectador, que exige entrega total e que permanece na mente muito depois de sua conclusão. Um trabalho sombrio e inesquecível que transforma a mitologia de "Twin Peaks" em algo ainda mais profundo e arrebatador.