16.4.24

“Navalny” - Daniel Roher (EUA, 2022)

Sinopse:
 
Alexei Navalny (1976-1924) foi um advogado, ativista, blogueiro e político russo que fez inúmeras denúncias de corrupção nas empresas estatais russas. Ele foi considerado um dos maiores opositores do presidente Vladimir Putin que governa a Rússia desde 2012. Em 2020, ao estar em um voo doméstico da Sibéria para Moscou, passou mal. Ao chegar na Alemanha, para onde foi levado, foi constatado por um exame toxicológico que havia Novichok no seu organismo.
Comentário: Com o recente falecimento do político russo Alexei Navalny, nada melhor do que assistir ao documentário “Navalny”, ganhador do Oscar de Melhor Documentário em 2023, para conhecer um pouco melhor essa história.
Jerônimo Teixeira da Revista Piauí nos conta que apesar de Navalny ter falecido em 2024, já haviam tentado matá-lo em agosto de 2020. Ele diz: “Naquele mês, quando viajava pela Sibéria para gravar vídeos com denúncias sobre a corrupção do Kremlin, o advogado e ativista russo foi envenenado com um tipo de Novichok, série de potentes agentes nervosos que só são fabricados na Rússia. Começou a passar mal no voo de volta a Moscou – um vídeo feito por um passageiro registra seu uivo doloroso, enquanto a equipe de bordo tenta socorrê-lo. O avião fez um pouso de emergência em Omsk, onde Navalny foi internado às pressas. Graças aos esforços de Yulia Navalnaya, sua mulher, dois dias depois ele seria transferido, em coma, para um hospital em Berlim, onde se recuperou. Alexei Navalny não precisava ter retornado à Rússia. Boa parte de seu combate à ditadura de Vladimir Putin sempre foi travada em meios digitais – ele representava ‘a vanguarda dos dissidentes de dados’, na expressão de outro célebre inimigo do Kremlin, o enxadrista Garry Kasparov (que, aliás, vive exilado nos Estados Unidos desde 2013). Ainda na Alemanha, Navalny firmou uma parceria com o búlgaro Christo Grozev – jornalista do Bellingcat, grupo especializado em investigações online – para identificar os responsáveis por seu próprio envenenamento. Por meio de registros de voo, eles encontraram e divulgaram o nome de agentes da FSB, a agência de segurança russa, que seguiram o ativista até a Sibéria. Fazendo-se passar por um inspetor do Kremlin, Navalny conversou por telefone com um químico especialista em Novichok, que deu detalhes da operação. A Alemanha poderia muito bem servir de base para sua militância. No entanto, ele julgou necessário continuar a batalha na Rússia. Foi preso ao desembarcar em Moscou, na noite de 17 de janeiro de 2021. No dia 16/02/24, a missão entregue aos agentes da FSB em 2020 foi completada em um presídio no Círculo Polar Ártico. Alexei Navalny morreu aos 47 anos. A informação oficial é que ele sofreu um ‘mal súbito’ enquanto passeava no pátio da prisão, foi socorrido por médicos mas não resistiu. Enquanto escrevo [dia 20/02/24], a causa da morte ainda não foi divulgada. Até o paradeiro do corpo está sendo mantido em segredo. Só não paira dúvida sobre os responsáveis pela morte: Vladimir Putin e seu governo criminoso. Ao contrário do que disse outro dia um notório camarada do autocrata russo, essa afirmação não configura um julgamento apressado. Trata-se de um fato bem estabelecido: condenado a vinte anos de prisão por acusações espúrias de fraude, Navalny era um prisioneiro político e morreu sob a guarda do Estado que o encarcerou. O mistério que cerca o caso não está na autoria do assassinato (não é exagero qualificá-lo assim), mas nas ações da vítima”.
O documentário, vencedor do Oscar de 2023, acompanha a trajetória do personagem-título desde o envenenamento até o malfadado retorno à Rússia. Sobre isso Teixeira escreve: “Desde que vi o filme, para uma resenha publicada no Brazil Journal, o ato final me intriga. Por que Navalny, tendo sobrevivido a uma tentativa de assassinato, voltou à Rússia? Por que se entregou tão facilmente ao regime de Putin? Revendo o documentário depois da morte do protagonista, as cenas finais ganharam um sentido mais claro. Um sentido trágico, na acepção mais forte da palavra”.
Segundo ele, “a bravata e a provocação faziam parte da persona pública de Navalny. Sua performance final, porém, não saiu manchada pela demagogia. O ponto final de sua história torna mais cristalina a essência do teatro que ele armou para voltar à casa de seus assassinos. Quando diz que a lei está do seu lado, Navalny – que não seria ingênuo de acreditar no respeito de Putin a qualquer preceito legal – está se deixando arrastar por uma lei maior, uma lei que, na falta de palavra menos dramática, podemos chamar de destino. E ir ao encontro do destino, por mais terrível que seja, é próprio dos heróis que a tragédia clássica nos legou”.
O que disse a crítica (lembrando que ambas foram escritas antes da morte de Navalny):
Ritter Fan avaliou com 3,5 estrelas, ou seja, muito bom. Escreveu: “’Navalny’ (o documentário) consegue trazer à tona, com o devido destaque, um assunto potencialmente relevante para o futuro da geopolítica mundial que acabou soterrado pelas notícias alarmantes sobre a pandemia [do covid], deixando mais uma vez evidente o tipo de pessoa que Putin é. Se a obra de Roher surtirá algum efeito prático, se Navalny poderá se beneficiar politicamente dessa exposição, é difícil de saber, mas fica a torcida para que ele seja pelo menos um instrumento de mudança”.
João Lanari Bo do site Vertentes do Cinema avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Disse: “O leitor deve estar se perguntando: afinal, isto é um documentário, ou um thriller? ‘Navalny’ em certo momento pede ao realizador para não fazer um ‘filme de memórias, maçante’, como se ele já estivesse morto. Pelo contrário, quer um suspense político de tirar o fôlego, entretenimento-pipoca em que o público espera a sobrevivência do herói e nunca tenha motivos para vê-lo como mártir. Um thriller com um vilão a altura, ninguém outro que o Presidente Putin. (...) Em ‘Navalny’, o documentário, assistimos o mesmo dispositivo em ação: o Presidente recusa-se a pronunciar a palavra ‘Navalny’ nas coletivas de imprensa, utilizando estratagemas caricaturais para evitar o nome e responder às perguntas, do tipo ‘essa pessoa que você citou’. Alexei Navalny acreditou que sua popularidade o salvaria de ser assassinado: a verdade, entretanto, parece ser que sua desaparição foi decidida no momento mesmo que seu nome se tornou impronunciável. Putin se tornou tão poderoso que imaginou ser possível matar Navalny – talvez porque ninguém jamais suporia que ele seria tão destemido a ponto de tentar. Questões como essa permeiam o doc-thriller, opacas e impenetráveis como a personalidade do líder russo”.
O que eu achei: Quando o documentário terminou eu fiquei me perguntando quantos heróis como Navalny morreram por fazer o certo. Não há como terminar de ver e não pensar na morte da vereadora Marielle Franco, assassinada a tiros em 2018 por atrapalhar os interesses dos irmãos Chiquinho e Domingos Brazão na grilagem de terras na Zona Oeste do Rio. Outro que morreu fazendo o certo foi Chico Mendes no Acre, também por atrapalhar a atuação de grileiros de terras. E assim vamos nos lembrando de inúmeros casos, tanto no Brasil quanto no exterior, de pessoas que não ficaram de braços cruzados perante injustiças. O documentário sobre o Navalny foi feito antes de seu assassinato se consumar, mas mostra justamente a tentativa de envenenamento que ele sofreu em 2020 e que quase tirou sua vida por denunciar, dentre outras coisas, a corrupção nas empresas estatais russas, batendo de frente com os interesses do presidente Putin. Não há como assistir a esse documentário e sair otimista. Desliguei pensando que o mundo, de fato, segue por um caminho sem volta onde os ganhadores serão sempre os piores.

15.4.24

“Butch Cassidy e Sundance Kid” - George Roy Hill (EUA, 1969)

Sinopse:
Butch Cassidy (Paul Newman) e Sundance Kid (Robert Redford) são dois ladrões e ganham a vida assim. Certo dia assaltam um comboio de uma pessoa muito importante, que não vai dar trégua aos dois amigos, contratando um grupo de cowboys comandado por um xerife incorruptível (Jeff Corey). Os dois amigos fazem de tudo para escapar, até que, num ato de desespero, fogem para a Bolívia, na América do Sul.
Comentário: Trata-se do filme número 69 da lista dos 100 Essenciais elaborada pela Revista Bravo! em 2007. A matéria diz: “Este western conta a história, baseada em fatos reais, vivida pelos amigos Butch Cassidy (Paul Newman) e Sundance Kid (Robert Redford) e seu grupo de assaltantes de trens e bancos (Bando do Buraco na Parede), que fogem da polícia por todos os Estados Unidos e depois para a Bolívia. Juntos, eles funcionam como muitas outras duplas: Cassidy é o cérebro, expert em arquitetar planos para conseguir dinheiro ilegal. Sundance é o executor, atira como ninguém. Apesar de foras-da-lei, a dupla conquista a simpatia do público pelo humor. Assim, Roy Hill popularizou a lenda em torno da dupla de criminosos que já era conhecida, mas tornou os bandidos agradáveis ao público (graças também ao poder de sedução dos então galãs Newman e Redford, que retornariam juntos em 1973 em ‘Golpe de Mestre’, outro grande sucesso do mesmo diretor). O retrato da dupla no filme se torna, graças ao roteiro assinado pelo escritor William Goldman, uma releitura do gênero western tradicional, com homens durões de ambos os lados da lei, e passa a ser uma comédia ambientada em um cenário e com uma história que normalmente seriam usados para os westerns. Mais ainda, os diálogos e as situações se aproveitam do gênero para aumentar o efeito cômico, às vezes exagerando e ironizando situações típicas do western, na direção oposta adotada por cineastas como Sergio Leone e Sam Peckinpah em suas reinterpretações do gênero. E há ainda uma dose de romance na personagem Etta Place (namorada de Sundance), numa interpretação encantadora de Katharine Ross. Entre os astros cotados na época para desempenhar a dupla central estiveram Marlon Brando, Jack Lemmon, Dustin Hoffman, Warren Beatty e Steve McQueen. Este último recusou ao saber que lhe reservava o papel de Sundance Kid e que, nos créditos, seu nome apareceria depois do de Paul Newman, tido como o astro principal. ‘Butch Cassidy’ foi uma das grandes bilheterias da história e recebeu sete indicações ao Oscar, das quais ficou com os de Melhor Roteiro, Trilha Sonora, Fotografia e Canção, para ‘Raindrops Keep Falling' on My Head’, de Burt Bacharach e Hal David”.
O que eu achei: O filme reinventa o gênero western com sua leveza e comicidade. A dupla Butch Cassidy (Paul Newman) e Sundance Kid (Robert Redford), com seus atores no auge da juventude, traz aquele ar fresco para a trama repleta de camaradagem nas suas investidas para roubar dinheiro de bancos e trens. Etta Place (Katharine Ross) completa o trio de amigos representando a moça meiga e sedutora, papel esse que nos anos 60/70 era bem aceito mas que, atualmente, seria alvo de críticas feministas diversas. De qualquer forma, considerando a época em que foi feito, é um filme agradável que vale a pena ser visto. Atenção à cena na qual Butch Cassidy leva Etta Place para dar um rolê de bicicleta embalada pela música “Raindrops Keep Fallin ‘on My Head” de Burt Bacharach interpretada por B. J. Thomas. É daqueles filmes gostosos de se ver. Se jogue.

14.4.24

“Sem Ursos” - Jafar Panahi (Irã, 2022)

Sinopse:
 Enquanto o cineasta Jafar Panahi (interpretado por ele mesmo), que teve sua liberdade cerceada, tenta dirigir um filme remotamente, a partir de um vilarejo na fronteira entre o Irã e a Turquia, a comunidade local, que vê sua presença com desconfiança, solicita sua ajuda para resolver um problema de um rapaz (Javad Siyahi) que acredita estar sendo traído pela sua prometida.
Comentário: Jafar Panahi nasceu em Minaeh, no Irã, em 1960, e estudou direção de cinema e TV em Teerã. Ele é considerado o mais importante cineasta iraniano em atividade. Foi assistente de direção de Abbas Kiarostami em “Através das Oliveiras” (1994). Em 2010, foi condenado pela justiça e proibido de filmar ou sair do Irã por vinte anos sob a acusação de fazer propaganda contra o governo iraniano. Já assisti dele um documentário chamado "Isto Não É Um Filme" (2011) e cinco filmes de ficção, todos excelentes: "O Balão Branco" (1995), "O Espelho" (1997), "Taxi Teerã" (2015) e "3 Faces" (2018).
Paulo Henrique Silva do site O Tempo nos diz: “Em determinado momento de ‘Sem Ursos’, em meio a um lugar ermo e na escuridão, o diretor Jafar Panahi é informado por seu assistente que ele está justamente na fronteira iraniana, onde, em negociação com contrabandistas, poderia deixar o país que vem prejudicando a sua carreira, a ponto de não deixá-lo sair do território (...). A partir dessa situação, podemos notar três linhas narrativas no filme. (...) Uma delas é metalinguagem, em que o realizador tem na exploração desses bastidores uma forma de falar de sua situação política, colocando-se quase sempre em primeira pessoa, como protagonista, criticando um regime ortodoxo que proíbe a liberdade de expressão. Apesar de ser um artifício comum ao cinema iraniano, a escolha de Panahi o tem acompanhado desde 2010, quando foi sentenciado a não sair de casa e não usar uma câmera. São cinco filmes, que mesclam o documentário e a ficção. Desta vez ele é mais sutil, adotando uma posição de observador. Embora sua história de perseguição esteja fortemente presente, Panahi acompanha dois casos românticos. Essa é a segunda linha narrativa de ‘Sem Ursos’, quando dois casais enfrentam problemas para materializar o seu amor em face à política e à cultura do país, ambas imbricadas pela religião. O diretor toma contato com essas histórias a partir de sua câmera, não necessariamente de uma ação voluntária. O fato de mirá-la para algum lugar suscita questionamentos e problemas. É quando entramos no terceiro movimento do filme, na imposição de uma atmosfera de medo que o atravessa. Um receio que não está apenas na atitude de Panahi em logo sair da fronteira e retornar para a casa onde está hospedado. Dos contraventores à própria comunidade, as pessoas parecem vigiadas constantemente - curiosamente, um ‘Grande Irmão’ sem câmeras e aparatos de monitoramento.
Talvez este seja o trabalho mais triste do cineasta, que, após tantos anos se manifestando politicamente, fazendo de seus filmes importantes alertas sobre a tentativa (parcialmente bem-sucedida) de calar o artista, Panahi parece conformar-se em perceber que não é preciso mais o Estado estar presente para criar paranoia, medo e julgamento. Tudo isso já está entranhado na sociedade iraniana”.
O que disse a crítica: João Lanari Bo do site Vertentes do Cinema avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Escreveu: “Dizem os veteranos que a necessidade e a coragem são as mães da invenção cinematográfica: o fato é que Panahi adaptou sua linguagem (e a metalinguagem) dentro desses limites, encontrando uma fórmula poética, se é que cabe o emprego do adjetivo, para expressar-se. Até quando a fórmula vai funcionar é outra questão. Um regime autoritário como o iraniano é capaz de dar vazão a uma expressão audiovisual moderna e sutil, veiculando uma atmosfera política pesada em estado latente, quase imperceptível, mas presente. Mais uma contradição desse país riquíssimo em tradições culturais, e contido numa religiosidade conservadora e fundamentalista. Os filmes de Panahi são extensão da sua própria vida, do seu embate diário para exercer o ofício - e claro, seus impasses ganham relevo pela repercussão internacional de suas produções”.
Arthur Gadelha do site Ensaio Crítico avaliou com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Disse: “’Sem Ursos’ (...) é mais um inesquecível capítulo do cinema iraniano de ‘filmar o cinema’, a irreverente metalinguagem de um cineasta que precisa constantemente reinventar sua própria criatividade. Ironicamente, mesmo mais de 10 anos depois do seu primeiro manifesto com um ‘não-filme’, ele não pôde estar presente na sessão de estreia deste quando foi exibido em Veneza porque ainda estava detido. Ou seja, a grande virada que sua carreira deu após a pública repressão sobre sua existência é de uma constância inevitável porque, francamente, como evitar falar disso? Diante da censura e da perseguição, como Panahi poderia filmar o mundo sem a própria epifania que é poder filmá-lo? Como filmar outra coisa senão fronteiras? Fronteiras entre países, entre culturas, entre liberdade e prisão, entre passado e futuro, entre a vida e a ficção do cinema, das tradições, das religiões, das cidades e de si mesmo”.
O que eu achei: Para quem não acompanha a vida do cineasta Jafar Panahi vale saber que ele foi preso em 2010 por fazer propaganda contra o governo, mas conseguiu liberdade condicional, embora impedido de sair do país e banido de dirigir filmes por vinte anos. Em 2022, quando visitava o Ministério Público local com advogados e colegas para saber como estavam outros dois cineastas, Mohammad Rasoulof e Mostafa Aleahmad, ele foi novamente detido e condenado a seis anos de cadeia. Depois de iniciar uma greve de fome, Jafar foi solto sob fiança, ainda em 2022, quando rodou este filme. Muitos desistiriam de filmar perante tamanha perseguição mas ele, ao contrário, fez do limão uma limonada, e vem apresentando filmes que abordam a questão. Neste “Sem Ursos” Panahi é o cineasta que está com sua liberdade cerceada e resolve dirigir um filme remotamente, através do seu laptop, dando as orientações para que sua equipe grave as cenas em outro local seguindo suas instruções. Ele está hospedado num vilarejo na fronteira entre o Irã (sua terra natal) e a Turquia. Enquanto isso vamos acompanhar os moradores do vilarejo que o procuram para ajudar com uma questão: um rapaz desconfia que está sendo traído por sua prometida e, como Panahi andou tirando fotos do local, quem sabe ele não teria uma prova dessa traição. O resultado é, como sempre, um filme singular e inteligente, como tudo o que ele faz. Se estamos na fronteira física entre Irã e Turquia, estamos também na fronteira entre documentário e ficção e no limite sobre a ética das imagens. Imperdível. Atenção ao final dos créditos do filme onde aparece uma homenagem à Hengameh Panahi. Ela foi uma produtora iraniana, estabelecida na França, que desempenhou um papel importante na produção, financiamento e venda de direitos internacionais para vários filmes de conteúdo político, como “Taxi Teerã” de Jafar Panahi, por exemplo. Ela faleceu em 2023 aos 67 anos. Fica aqui um agradecimento à Hengameh, pois é graças à pessoas assim que podemos assistir a essas maravilhas.

9.4.24

“Guerra e Paz” - Sergei Bondarchuk (Rússia, 1965-1967)

Sinopse:
O filme retrata, em quatro partes, o confronto entre Napoleão Bonaparte e a Rússia, relacionando-o às vidas das famílias Bolkonsky, Rostov e Bezukhov. O que começa como um desastre para os russos termina, sete anos mais tarde, com uma reviravolta, à medida em que a união contra o inimigo comum dissolve o antagonismo entre aristocracia e campesinato.
Comentário: Trata-se de uma adaptação do livro “Guerra e Paz” escrito em 1869 pelo russo Liev Tolstói. O romance possui mais de mil páginas e já havia sido adaptado para o cinema anteriormente, primeiro em 1915, na era muda, por Iákov Protanázov e Vladímir Gárdin. Depois, em 1956, por King Vidor. Esta versão do diretor Sergei Bondarchuk, feita entre 1965 a 1967, teria sido a terceira.
Bondarchuk havia realizado apenas um longa - “O Destino de Um Homem” (1959) – antes de realizar este filme que possui 402 minutos de duração, ou seja, 6h42m. Assim como no livro, o filme é dividido em 4 episódios: “Andrei Bolkonsky” (1965), “Natasha Rostov” (1966), “O Ano de 1812” (1967) e “Pierre Bezukhov” (1967), virando uma espécie de minissérie.
A trama gira em torno da campanha de Napoleão na Áustria, e descreve a invasão da Rússia pelo exército francês e a sua retirada, compreendendo o período de 1805 a 1820. Trata-se de um painel da aristocracia russa. Li que as duas principais famílias retratadas - Rostov e Bolkonsky - representam as famílias Tolstói e Volkonski, respectivamente do pai e da mãe do autor, Liev Tolstói. “Guerra e Paz” retrata o preconceito e a hipocrisia da nobreza, e também suas tradições religiosas, ao lado da vida cotidiana dos soldados e dos servos. Tolstói narra as guerras entre o imperador francês Napoleão e as principais monarquias da Europa, dissecando causas, origens e consequências dos conflitos e, principalmente, expondo os homens e suas fraquezas. Claro que adaptar um livro tão grande implicaria em cortar partes. Com isso o filme exclui várias histórias menores.
Maria do Rosário Caetano da Revista do Cinema nos conta que “nunca se viu tanto luxo, elenco tão afinado e figuração tão impressionante (milhares de soldados do Exército Vermelho em ação). Locações reais de tirar o fôlego, figurinos inimagináveis, objetos de cena de imensa beleza (colhidos em 40 museus), batalhas reconstituídas como se fossem reais (com o imperador-general Napoleão Bonaparte enfrentando tropas russas em sangrentos combates)”.
Além de dirigir o caríssimo e longuíssimo épico, o diretor também interpretou um de seus protagonistas: o rechonchudo, tímido e indeciso Pierre Bezukov. Sua esposa na vida real, a atriz Irina Skobtseva, é quem interpreta sua mulher Elena no filme.
Caetano nos diz que “no épico inspirado em Tolstói, há dois terríveis enfrentamentos com Napoleão”. Segundo ela, “no primeiro (1805) o Czar russo aliou-se à Áustria para enfrentar o Corso. Russos e austríacos foram fragorosamente derrotados em Austerlitz”. Já no segundo, “as tropas russas, comandadas mais uma vez pelo vesgo, mas engenhoso, General Kutuzov (Boris Zhakava), são derrotadas e batem em retirada. Napoleão adentra, glorioso, no coração do império, a bela Moscou. O filme, porém, mostrará que o triunfo de 1812 foi uma vitória de Pirro. O general vesgo obrigará soldados e população civil a deixarem suas casas e colocará fogo (sim fogo!) em metade de Moscou. Quando Napoleão der por si, perceberá que não há generais para assinar os termos da derrota, nem população para plantar e colher víveres capazes de alimentar o imenso exército francês plantado em solo russo (mais de 50 mil soldados). Quando as tropas napoleônicas decidirem regressar ao solo pátrio (situado a mais de 3 mil km), a lama, a fome e o General Inverno seriam aliados estratégicos de Kutuzov. Os russos, afinal, haviam promovido a mais espetacular (e enigmática) retirada da história moderna”.
O filme foi premiado pelo Grande Prêmio do 4º Festival Internacional de Cinema de Moscou (1965), recebeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (1968) e ganhou destaque no Globo de Ouro por Melhor Filme Estrangeiro (1969). 
Os episódios:
No primeiro episódio - denominado “Andrei Bolkonsky“ (1965) - o filme apresenta três famílias aristocráticas: os Bolkonsky, os Rostov e os Bezukhov, com foco na figura do Príncipe Andrei Bolkonsky que vai participar da guerra. Da família Rostov o foco é dado à personagem Natasha, uma condessa jovem e radiante. E da família Bezukhov o foco é dado em Pierre, amigo de Andrei, um cara ingênuo e sentimental.
No segundo - chamado “Natasha Rostova” (1966) – vamos conhecer melhor a personagem da jovem condessa, uma menina que está virando mulher. Ela começa a atrair a atenção dos homens e a pensar sobre o amor e a possibilidade de se casar com algum pretendente. Todos os seus pensamentos são ouvidos em voice-off. É a parte mais delicada e romântica das quatro, que termina em 1812 com Napoleão invadindo a Rússia.
O terceiro – “O Ano de 1812” (1967) – é basicamente um filme de guerra no qual será retratada, com muita competência, a Batalha de Borodino, entre franceses e russos e com a presença de Napoleão. Trata-se de um conflito sangrento que deixou dezenas de milhares de mortos e mutilados.
No quarto – “Pierre Bezukhov” (1967) – temos a finalização do seriado mostrando como termina a Batalha de Borodino, ao mesmo tempo que mostra os rumos de cada um dos três personagens principais: Andrei Bolkonsky, Natasha Rostova e Pierre Bezukhov, que é o protagonista dessa etapa. 
O que eu achei: O filme, restaurado pelos Estúdios Mosfilm, mostra uma fotografia arrebatadora. Foi o filme mais caro produzido pela União Soviética até então, demorou 6 anos para ser concluído pois adaptar um romance tão longo e complexo como “Guerra e Paz” do Tolstói não é tarefa para qualquer um. Dizem que esta é a mais competente adaptação do livro para o cinema. O enredo é basicamente a história da invasão napoleônica à Rússia, abarcando o período de 1805 a 1820. Todos os episódios têm a figura do narrador que conduz a trama com maestria. É impossível tirar os olhos da tela, seja nas cenas internas (palacetes, bailes, figurinos da aristocracia) como externas (batalhas, caçadas, paisagens com neve). Há tomadas aéreas impressionantes feitas sem drones. Impressiona também ver os exércitos imensos que não foram feitos digitalmente, mas sim com pessoas reais. As cenas de bailes em salões suntuosos são de encher os olhos. Difícil surgir alguma adaptação superior à esta. Pode-se considerar uma obra definitiva. Simplesmente imperdível.

8.4.24

“Rapto” - Marco Bellocchio (Itália/França/Alemanha, 2023)

Sinopse:
1858, Edgardo Mortara (Enea Sala), um jovem judeu que vive em Bolonha, na Itália, após ser batizado secretamente, é tirado à força de sua família para ser criado como católico. Seus pais - Salomone Mortara (Salomone Mortara) e Marianna Padovani Mortara (Barbara Ronchi) - lutam para libertar o filho que se tornou parte de uma batalha política que colocou o papado contra as forças democráticas e de unificação italiana.
Comentário: Marco Bellocchio (1939) é um cineasta e ator italiano. Ele dirigiu mais de 23 longas-metragens, além de curtas e documentários. Vi dele apenas seu primeiro longa, o bom “De Punhos Cerrados” (1965).
Jorge Pereira Rosa do site C7nema nos conta que Marco Bellochio é um “Cineasta político, comprometido e antifascista, [que] questiona constantemente a violência das instituições”. Ele diz que “no seu mais recente filme (...) o realizador volta a colocar o foco na igreja, ao contar a história de Edgardo Mortara, um menino judeu que no século XIX é sequestrado para ser criado como cristão, o que desencadeia uma batalha política e protestos generalizados, quer na Itália como noutros países”. 
Em entrevista ao C7nema em Cannes, Bellochio declarou: “O meu interesse neste filme era contar a história deste rapaz que foi raptado pela Igreja, na figura do papa Pio IX, através do batismo. Este gênero de raptos era muito comum na época. Começaram no século XVI e duraram até 1858 (século XIX), quando aconteceu o caso do Edgardo. Tudo se baseia num princípio associado ao batismo, ou seja: quando você é batizado, pertence à igreja e tem de ser educado conforme os seus ensinamentos católicos. O poder da igreja era enorme. As pessoas protestavam, mas era impossível haver uma reversão, pelo menos até o caso do Edgardo. A razão pela qual o caso do Edgardo trouxe um enorme escândalo foi porque coincidiu com o fim do pontificado e da ligação da igreja ao estado. Os protestos foram generalizados e, até Napoleão III, um tradicional protetor do Vaticano, criticou o sequestro da criança e pediu a devolução da criança aos seus pais. Porém, nesta altura, o papa disse que não podia fazer isso pois era inconcebível para a igreja católica negar o princípio da irreversibilidade. A criança foi batizada, logo os laços familiares eram menores perante o desígnio da igreja. Mesmo com o escândalo, o Papa em questão, Pio IX, chegou a ser beatificado pela Igreja Católica, o que é um absurdo. Isso não foi só considerado um insulto, mas um crime, para a comunidade judia. (...) Para serem considerados santos pela igreja é preciso provar algum milagre. E não basta uma situação, são precisos duas ou três. As entidades católicas já pediram perdão aos judeus pela forma que lidam com eles ao longo de vários séculos, mas nunca pediram por este caso em particular”.
Rosa comenta que “em alguns círculos mais conservadores da igreja surgiram críticas e defesas às decisões do Papa Pio IX na época, o que motivou o atual rabino-chefe de Roma, Riccardo Di Segni, numa carta aberta ao jornal La Repubblica, mostrar a sua preocupação. Curiosamente, o jornal da Cidade do Vaticano, o Osservatore Romano, já opinou sobre o assunto com um editorial (...) observando que hoje em dia o sequestro de Edgardo Mortara ‘não poderia se repetir’, pois ‘o Concílio II do Vaticano, que durante o início da década de 1960 aproximou a Igreja das necessidades e condições do mundo moderno’, ajudou a mudar a perspectiva ‘daqueles tempos em que todas as crianças batizadas deviam ser educadas sobre os desígnios católicos, mesmo contra a vontade dos pais’”.
O que disse a crítica: Luiz Oliveira do site Metrópolis avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Escreveu: “Não faz tanto tempo assim que o poder das instituições eram plenos, especialmente no que tange a religião. E é isso que Bellocchio procura explorar. (...) Os cenários são suntuosos, a fotografia e a trilha sonora, luxuosas. Cabe notar, além da crueldade destes homens, o descaso com o qual eles tratam a comunidade judaica. Sem dúvida, um prenúncio terrível do que ainda seria perpetrado contra estes no continente. Ao comentar sua participação no rapto da criança, um dos personagens explica que estava meramente ‘cumprindo ordens’”.
O que eu achei: O filme conta uma história verídica ocorrida em 1858 de um menino chamado Edgardo Mortara, filho de pai judeus. Ele vivia normalmente em sua casa, junto com mais oito irmãos quando, inexplicavelmente, descobrem que, aos seis anos de idade, ele havia sido batizado. De fato, depois de muita pesquisa, resolvem o enigma: uma antiga governanta da casa, temendo que ele “fosse para o limbo após morrer”, resolveu, ela mesma, batizá-lo, seguindo as orientações de um comerciante católico local. O fato insólito é que as autoridades episcopais da cidade de Bolonha resolveram então arrancar o menino Edgardo das mãos de seus pais, o rebatizaram à força e o levaram para ser adotado pelo próprio papa Pio IX. O caso teve enorme repercussão e acirrou os ânimos antieclesiásticos do movimento nacionalista. O resultado é um drama mostrando as tentativas da família de reaver a criança. A trama é narrada de forma convencional, com uma belíssima fotografia. Bellocchio, do alto dos seus 83 anos, sabe muito bem como fazer isso. Atenção para o ator mirim italiano Enea Sala, um encanto de criança que interpreta Edgardo na infância. Um bom filme que vale ser visto, especialmente para se conhecer melhor a história das instituições e entender um pouco o abismo para o qual o mundo caminha. Boa pedida.

7.4.24

“Os Delinquentes” - Rodrigo Moreno (Argentina/Brasil/Chile/Luxemburgo, 2023)

Sinopse:
Morán (Daniel Elías) é bancário e anseia largar a vida monótona que leva planejando nunca mais precisar trabalhar de novo. Ele encontra a solução perfeita: roubar uma enorme quantia em dinheiro do cofre do banco em que trabalha. Porém, para que o plano funcione, Morán oferece uma parte do dinheiro ao seu colega, Román, que deve escondê-lo enquanto o outro confessa o crime e passa um breve período na cadeia. Entretanto, o plano começa a sair do combinado quando Román conhece uma mulher que transforma a sua vida para sempre.
Comentário: Rodrigo Moreno nasceu em Buenos Aires, em 1972. Realizador e argumentista, é frequentemente associado ao Novo Cinema Argentino que emergiu nos anos noventa. Estudou realização na Universidade do Cinema, Buenos Aires, onde também leciona desde 1996. Em 2006, realizou “O Guardião”, seu primeiro longa-metragem solo e, em 2011, lançou “Um Mundo Misterioso”, que foi selecionado para competir no Festival de Berlim. “Os Delinquentes” (2023) é o primeiro filme que vejo dele.
Bruno Botelho dos Santos do site Adoro Cinema nos conta que “’Os Delinquentes’ começa como um filme de assalto, mas logo transita por diferentes gêneros, se tornando mais existencial. O tema principal da produção é sobre liberdade, discutindo e criticando nossas relações com o trabalho na sociedade capitalista”.
Santos entrevistou o diretor Rodrigo Moreno. Na entrevista o diretor declarou “que a ideia era justamente trazer um filme questionador”, daqueles que servem para “fazer perguntas ao público”. O diretor teria dito que estamos vivendo num mundo cheio de ódio e de violência e que, depois da pandemia do covid, o mundo teria ficado ainda pior. Segundo Moreno, “o mundo está ficando mais sombrio”, referindo-se às guerras e aos líderes políticos com discursos extremistas. Outra questão abordada no filme é esse “capitalismo extremo”, que faz com que o trabalhador destine sua vida toda para trabalhar. As empresas no mundo estão aumentando suas fortunas e, as pessoas, aumentando sua pobreza.
A história foi inspirada livremente no filme policial argentino "Apenas Um Delinquente” de 1949. Segundo a Agencia France-Presse, “Embora no filme original de 1949, o protagonista sonhe em se tornar milionário com o fruto de seu roubo, em ‘Os Delinquentes’, Moreno decide que ‘seus’ ladrões cometerão um ‘pequeno roubo’, apenas o necessário para não precisar trabalhar mais e viver dignamente”.
O que disse a crítica: Marcelo Müller do site Papo de Cinema avaliou com o equivalente à 2 estrelas, ou seja, achou fraco. Escreveu: “Atualmente, são incomuns os filmes com três (ou mais) horas de duração nas telonas. Isso porque a metragem extensa restringe a quantidade de sessões diárias nas salas de cinema e, consequentemente, compromete a exploração comercial da obra. (...) ‘Os Delinquentes’ tem ao todo 189 minutos, mas infelizmente essa liberdade bem-vinda é utilizada de modo pouco efetivo pelo cineasta Rodrigo Moreno, [inflando] a trama com divagações e reiterações que não acrescentam muito à experiência”.
João Garção Borges do Magazine HD, ao contrário, gostou muito, avaliou com o equivalente a 4 estrelas. Disse: a trama “pode ser encarada como o filme ideal para desenhar um primeiro e incisivo esboço sobre a esperança e a falta dela num país recentemente assombrado por um ato eleitoral sui generis que colocou no poder um alucinado que se autodefine como anarco-capitalista”. Segundo ele, “Todos os valores de produção estão presentes, sobretudo fotografia, som (com especial incidência na criação dos ambientes e do chamado espaço sonoro), música, realização, montagem, direção de atores e naturalmente os atores em si, onde se destacam Daniel Elías e Esteban Bigliardi”. Para Borges é um filme em busca de uma Argentina perdida.
O que eu achei: O filme começa bem. A premissa é, no mínimo, curiosa, mostrando um bancário entediado que faz as contas e percebe que ele precisará trabalhar mais uns 20 anos para poder se aposentar. O cofre do banco está cheio de dinheiro e ele acaba percebendo que, se ele roubar um bom volume daquelas notas e se entregar à polícia, ele vai ser sentenciado a seis anos de prisão, saindo em três anos e meio por bom comportamento. Então ele decide que vale a pena arriscar. Para isso ele precisa de um cúmplice que guarde o dinheiro por esse período. Tudo isso é mostrado na primeira hora do filme que tem, no total, 3h10m aproximadamente. Entretanto, após os primeiros 60 minutos, a coisa começa a desandar. Como disse o crítico Marcelo Müller do site Papo de Cinema, o diretor Rodrigo Moreno infla a trama com divagações e reiterações que não acrescentam muito à experiência, tornando o ritmo arrastado. Fazer um filme com 3h10m de duração, penso eu, implica uma certa responsabilidade para um diretor e deve valer cada minuto que o espectador estiver sentado naquela cadeira. Mas não é isso que ocorre. Poderia ser um filme mais enxuto que seria menos enfadonho e chegaria no mesmo lugar. Resumindo, ele começa bem e acaba mal. Bem mediano.

31.3.24

“Perfect Days” - Wim Wenders (Japão/Alemanha, 2023)

Sinopse:
Hirayama (Koji Yakusho) parece totalmente satisfeito com sua vida simples de limpador de banheiros em Tóquio. À parte sua rotina bastante estruturada, dedica-se à paixão pela música e pelos livros. Também ama as árvores e sempre as fotografa. Uma sequência de encontros inesperados revela gradualmente o seu passado, levando-o à fazer uma reflexão comovente e poética sobre encontrar a beleza no cotidiano.
Comentário: Wim Wenders (1945) é um cineasta, dramaturgo, fotógrafo e produtor de cinema alemão considerado uma importante figura do Novo Cinema Alemão. Assisti dele 11 filmes: as obras-primas “Paris, Texas” (1984) e “Asas do Desejo” (1987), os excelentes "O Amigo Americano" (1977) e "Tão Longe, Tão Perto" (1993), os medianos "Medo e Obsessão" (2004), "Estrela Solitária" (2005) e “Submersão” (2017) e os não tão interessantes “O Medo do Goleiro Diante do Pênalti” (1972) e "Palermo Shooting" (2008). Assisti também os documentários "Pina" (2011) e "O Sal da Terra" (2014).
Rafael Delgado do Cine Ninja nos conta que “Inicialmente, o projeto havia sido pensado como um documentário sobre o sistema de banheiros públicos impecáveis de Tóquio, projetados por grandes arquitetos do país. Mas Wim Wenders, quando convidado pelo governo municipal de Tóquio para dirigir a obra, como grande admirador da cultura e dos filmes japoneses, e surpreso com a cultura sanitária do Japão, enxergou nela a possibilidade de transformá-la em uma ficção. Tendo o banheiro público como a locação protagonista do projeto, o diretor afirma: ‘Um banheiro é um lugar onde todos são iguais. Não existe rico e pobre, jovem e velho; todo mundo é parte da humanidade’”.
O site Terra diz que “O filme marcou a volta de Wenders à competição do Festival de Cannes (...) saindo de lá com o prêmio de melhor atuação masculina para Kôji Yakusho (...). O ator (...) interpreta Hirayama. Todos os dias, ele faz tudo sempre igual: acorda ao som da vizinha varrendo a rua, antes de amanhecer, escova os dentes, rega as plantas, compra um café na máquina ao lado da sua casa simples e antiga, entra no carro, coloca uma fita-cassete para ouvir e vai para o trabalho. Hirayama limpa, de forma respeitosa e meticulosa, banheiros públicos de Tóquio. (...) Hirayama tem uma vida simples, sem luxos e posses, e está contente assim. Não fala muito. Vive sozinho, mas não é solitário. Gosta de observar as árvores e ver os raios de luz que penetram pela copa. Tira fotografias de detalhes que deixamos passar despercebidos com uma câmera analógica. Quando manda revelar aquele rolo, compra um único outro. Gosta de ouvir fitas-cassete de Patti Smith, Nina Simone, Lou Reed - a música ‘Perfect Day’ deu origem ao título do filme: ‘Dias Perfeitos’”.
O filme foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional perdendo para “Zona de Interesse”.
O que disse a crítica: Susana Bessa do site À Pala de Walsh avaliou com 4 estrelas, ou seja, excelente. Escreveu: “Este é o seu herói não-estereotipado, loquaz só na linguagem corporal. (...) Hirayama é um intelectual que se regozija no trabalho manual, mas não numa vida livre de vínculos. Vive sozinho, mas procura calor na sua dedicação com todos os seres vivos, seja nos pés de plantas que apanha e delas cuida, seja com o outro que se cruza no seu caminho. (...) Sem nunca esquecer claro que nem tudo é sobre ele. Uma senhora penteia um gato num jardim. Uma rapariga também come uma sanduíche durante o seu almoço sentada num banco. Mais tarde brinca com as sombras dos corpos, ou então conclui um jogo da velha que um estranho começou num papel, objeto que deixou para ser encontrado num banheiro público. E o carinho que a dona do bar nutre por ele, sem menção ou declaração. São tantos os silêncios gordos, e sorrisos que ora exacerbam ora sublimam. Há um entendimento da bravura da condição humana, de como esta se auto ampara. Mais palavras para quê? Enquanto o filme nos mostra o que reter, nós vemo-lo a manifestar-se em nós, mesmo sem nada lhe darmos em troca. À voz de Nina Simone, do seu ‘Feeling Good’, e do mais perfeito culminar da história de Hirayama conosco, tudo renasce, como uma fênix, das cinzas”.
Marcio Sallem do site Cinema com Crítica gostou ainda mais, avaliou com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Para ele trata-se de “uma obra que embeleza e encontra a ternura na vida comum de Hirayama, enquanto planta a semente da crítica em como encaramos o zelo obsessivo à rotina e ao trabalho como uma boia salva-vidas para evitar o eventual amargor que há na vida (e que perseguem Hirayama nos sonhos). Acho que Hirayama sempre notou isso em como permanece, esperançoso, olhando para cima, em direção à torre denominada Sky Tree (árvore dos céus), às árvores do parque e à luz que deixa passar por sua copa, na busca do inominado que resolva a equação da vida. Contudo, não encontra. A resposta não está acima (ou abaixo). Está na árvore plantada, na gentileza concedida, na troca de olhar, no replay da música. Não está, necessariamente, na materialidade das coisas, porém na significação que damos a cada uma delas, ao doarmos o nosso tempo (imaterial) e tornar o agora o mais essencial dos presentes”.
O que eu achei: Minimalismo define esse filme. A rotina do limpador de banheiros Hirayama (Koji Yakusho) no Japão parece um haikai, aquele poema curto de origem japonesa - em geral ligado ao cotidiano ou à natureza - composto por poucas palavras e muita simplicidade. Não espere grandes movimentos, nem grandes reviravoltas. É um filme para se ver naqueles dias em que você quer desacelerar. A trilha sonora é arrebatadora com músicas como “Perfect Day” do Lou Reed - que deu título ao filme - além de outras pérolas como “The House of the Rising Sun” (The Animals), “Redondo Beach” (Patti Smith), “Sittin’ On The Dock of The Bay” (Otis Redding) e “Feeling Good (Nina Simone). Você termina de ver e fica se perguntando no quanto de excesso há nas nossas vidas. Será que não valeria a pena simplificar tudo?

30.3.24

“Dois Homens e Meio” – Chuck Lorre & Lee Aronsohn (EUA, 2003-2015)

Sinopse:
Praia de Malibu, Califórnia. Dois irmãos bem diferentes um do outro: Charlie Harper (Charlie Sheen) - um solteirão que está sempre de bem com a vida, envolvido em jogos, bebidas e mulheres - e Alan Harper (Jon Cryer) que é quiroprático e tem um filho, Jake Harper (Angus T. Jones) – passam a morar juntos depois que a esposa de Alan, Judith (Marin Hinkle), pede o divórcio.
Comentário: Trata-se de uma série cômica que foi ao ar de 2003 a 2015. Teve 12 temporadas e 262 episódios, fazendo um sucesso estrondoso.
Segundo o site Wikipédia, a história é a seguinte: Charlie Harper (Charlie Sheen) é um compositor de jingles que mora numa bela casa na praia de Malibu, em Los Angeles. É rico, por isso tem uma enorme facilidade de conquistar as mulheres. Possui um belo carro na garagem e sempre se mete em confusões devido ao seu consumo de bebidas alcoólicas e seu envolvimento com mulheres, jogos e apostas. Seu estilo de vida muda quando seu irmão Alan Harper (Jon Cryer), que está no meio de um divórcio com a esposa, passa a morar com ele junto com seu filho Jake Harper (Angus T. Jones). Para complicar ainda mais a vida dos dois, eles tem uma mãe, Evelyn Harper (Holland Taylor), que não liga muito para eles e está sempre os tratando com desprezo. Charlie ainda tem que lidar com a sua vizinha estranha, Rose (Melanie Lynskey), que está sempre o perseguindo e vigiando. Rose teve um breve relacionamento com Charlie e é bem visível sua paixão por ele, apesar dele sempre tentar se afastar dela chamando-a de louca e perseguidora. Alan também tem de aturar sua ex-esposa Judith (Marin Hinkle) que está sempre lhe dando o fora e pedindo dinheiro. Apesar de Charlie e Alan serem pessoas muito diferentes, eles tem uma coisa em comum: os dois amam Jake e querem o melhor para o menino. Outro personagem não menos importante é a empregada de Charlie, Berta, interpretada pela atriz já falecida Conchata Ferrell.
Apesar do enorme sucesso do seriado, em fevereiro de 2010 as filmagens tiveram que ser canceladas por algumas semanas por conta do ator Charlie Sheen ingressar em um programa de reabilitação de drogas, voltando no mês seguinte. Aparentemente, tudo voltaria ao normal, mas em abril de 2010, Sheen anunciou que deixaria a atração. Ele filmou o episódio final da 7ª temporada, mas rejeitou prosseguir após recusar a oferta da CBS de receber 1 milhão de dólares por episódio por achar o valor “muito baixo”. Entretanto, após negociações, ele acaba voltando para gravar mais episódios recebendo 1,78 milhão de dólares por cada um. Em janeiro de 2011, Sheen entra voluntariamente num centro de reabilitação pela terceira vez em 12 meses e o seriado foi colocado novamente em hiato por tempo indeterminado. No mês seguinte, após atacar verbalmente o diretor e criador do seriado numa entrevista de rádio, a CBS anunciou que Sheen deixaria a produção. Ele finaliza a gravação da 8ª temporada, sendo demitido oficialmente em março de 2011.
Com a saída do personagem principal da trama, Chuck Lorre resolve prosseguir as gravações colocando Jon Cryer – que interpreta Alan Harper - em um papel-chave ao lado de um novo personagem que seria interpretado pelo ator Ashton Kutcher. E assim, em setembro de 2011, começa a 9ª temporada que mostra o personagem de Charlie Sheen tendo morrido. Seus parentes, amigos e ex-namoradas participam de seu funeral. A casa onde o personagem de Charlie morava em Malibu é colocada à venda e Walden Schmdit (nome do personagem de Ashton Kutcher) ingressa na trama comprando a casa que era de Charlie Harper. E assim a série ainda consegue fôlego para chegar até a 12ª temporada.
Outro que deixa o seriado durante as gravações é o ator Angus T. Jones que interpreta Jake Harper, o filho de Alan Harper. Ele entrou para o elenco quando tinha apenas 10 anos e permaneceu como um personagem regular até a 10ª temporada. O que ocorreu é que o ator entrou para a Igreja Adventista do Sétimo Dia passando a achar o conteúdo do programa pouco adequado. Com isso, no último episódio da 10ª temporada, Jake chega em casa e anuncia que vai para o Japão por pelo menos um ano e sai da trama. Mesmo assim, o ator fez uma aparição especial no último episódio da série em 2015.
O que eu achei: De fato, não se pode dizer que o conteúdo do seriado seja politicamente correto, muito pelo contrário: a série é sexista, possui piadas degradantes sobre mulheres, é machista e a relação entre os irmãos e mesmo entre a mãe e os filhos é tóxica e não deveria servir de exemplo para ninguém. Mas, apesar da podridão, ele é tão engraçado e até mesmo verossímil que você não consegue parar de assistir, especialmente na época em que passou que não se tinha tanta consciência sobre nada disso. Até hoje (2024) o seriado é transmitido pela Warner, em reprises que intercalam episódios da 1ª a 8ª temporada. Não faço ideia do porquê eles não exibem também as temporadas 9 em diante, sem o ator Charlie Sheen. Para ver o seriado completo você precisaria recorrer à algum streaming pago, como o da Amazon Prime, por exemplo. A química entre os atores é notória, indicando não só a boa qualidade do elenco como também uma competência em fazer rir por parte dos criadores da série e da direção. É aquele tipo de comédia com um timing perfeito. Uma pena Charlie Sheen ter saído de forma tão desastrada. Esse remendo que o seriado sofreu da 8ª para a 9ª temporada abalou completamente a trama que perdeu muito sem sua presença. Ashton Kutcher, apesar de esforçado, não consegue substituir Sheen à altura e a entrada frequente de novos personagens, a maioria deles ligados à Walden Schmdit, fazem o seriado parecer outro, perdendo toda a química anterior. Então mesmo sendo extremamente engraçado, da 9ª temporada em diante o rendimento cai bastante e assim segue até o final. Além disso, essas temporadas finais apelam demais para um conteúdo que passa dos limites do bom senso tornando tudo menos palatável.

25.3.24

“Vidas em Jogo” – David Fincher (EUA, 1997)

Sinopse:
Estamos em São Francisco, Nicholas Van Orton (Michael Douglas), um banqueiro milionário comemora o seu 48º aniversário - a idade do pai quando se suicidou - ganhando de presente do seu irmão Conrad (Sean Penn) um cartão que lhe dá acesso a um divertimento incomum organizado pela empresa Serviços de Recreação do Consumidor. Deste momento em diante Nicholas se vê envolvido em um perigoso "jogo", que parece ter como objetivo matá-lo. Ele já não sabe em quem confiar, pois qualquer pessoa pode ser um assassino em potencial.
Comentário: David Fincher (1962) é um premiado diretor e produtor de cinema norte-americano. Além de dirigir videoclipes e seriados, ele já dirigiu mais de 12 filmes. Vi dele os excelentes "Seven - Os Sete Crimes Capitais" (1995), "Zodíaco" (2007), "O Curioso Caso de Benjamin Button" (2008), "Millennium – Os Homens que Não Amavam as Mulheres" (2011), "Garota Exemplar" (2014) e "Mank" (2020). Vi também os bons "Clube da Luta" (1999) e "A Rede Social" (2010) e o não tão interessante "Alien 3" (1992). Desta vez vou conferir um trabalho antigo do diretor chamado “Vidas em Jogo” de 1997.
Fabio Belik do site Crônica de Cinema nos conta que tudo o que esperamos de David Fincher está lá: “a atmosfera onírica, a tensão permanente, as confusões mentais, a total incerteza quanto aos rumos da história... Só faltaram as aberrações morais beirando o escatológico. Talvez porque Fincher tenha preferido enveredar por caminhos mais... convencionais. ‘Vidas em Jogo’ é um thriller claramente inspirado nos filmes do mestre Alfred Hitchcock e por isso mesmo resulta palatável e agradável de se assistir. Em termos, porque a agonia de não poder confiar em personagem algum e jamais saber onde está a verdade é de fazer ranger os dentes! Antes de explicar esse ponto, será preciso examinar a sinopse: ‘Vidas em Jogo’ conta a história de Nicholas Van Orton (Michael Douglas), um banqueiro endinheirado que está prestes a completar 48 anos, a mesma idade que seu pai tinha quando se suicidou pulando do telhado da mansão. A data, portanto, tem significados perturbadores. Para comemorar, seu irmão, Conrad (Sean Penn), surge com um presente inusitado: um ingresso para participar de um jogo supostamente espetacular, disponível apenas para jogadores exclusivos, que será capaz de tirar o aniversariante do marasmo emocional em que se encontra. O jogo é organizado por uma empresa chamada CRS – Consumer Recreation Services, mas Nicholas não é informado do que se trata exatamente. Ainda assim, talvez por curiosidade e certamente por vaidade, decide aceitar. As situações estranhas não tardam a acontecer. De súbito elas se tornam absurdas e depois, desesperadoras. A vida de Nicholas é virada do avesso, tudo em nome do tal jogo. Quando ele se envolve com a sedutora Christine (Deborah Kara Unger), as complicações só aumentam, na mesma proporção das suas dúvidas: afinal, do que se trata esse tal jogo? O excelente roteiro de ‘Vidas em Jogo’ foi escrito em 1991 pela dupla John Brancato e Michael Ferris (...). Quando o filme finalmente entrou em produção, ganhou a adesão de David Fincher, que chamou Andrew Kevin Walker, o roteirista de ‘Se7en’, para fazer intervenções não creditadas no texto”. A fotografia ficou a cargo de Harris Savides e a trilha sonora é de Howard Shore.
O que disse a crítica: Alexandre Koball do site Cine Players avaliou com o equivalente a 2 estrelas, ou seja, fraco. Escreveu: “O filme é tecnicamente primoroso e divertido, e as intenções de suas mensagens são boas, mas isso não muda o fato dele nos fazer de imbecis – e isso é bastante imperdoável”. Segundo ele há problemas. Ele diz “você pode ignorá-los ou não se sentir enganado por eles, mas não pode, de forma alguma, negá-los. No final, ‘Vidas em Jogo’ é apenas um besteirol de Hollywood altamente bem elaborado, mas ainda assim um besteirol. O diretor de ‘Seven’ prova, dessa forma, ser altamente comercial, já que faz bombas esporádicas (...) – ainda que apropriadamente maquiadas para tentar disfarçar a feiura delas. Uma grande decepção”.
Yuri Correa do site Papo de Cinema, por outro lado, avaliou com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Disse: “Pegue um personagem central pragmático. Adicione-o em uma trama que exija seu raciocínio lógico. Misture bem com uma direção firme e preocupada apenas em contar a história que quer – fazendo isso o mais eficientemente possível. Embrulhe tudo muito bem com montagens inteligentes, trilhas instigantes e uma fotografia sempre bela e inventiva. Pronto, você tem um filme de David Fincher. Um diretor que, apesar de possuir uma identidade visual característica, jamais se permite sobrevaler aos seus roteiros e personagens”.
O que eu achei: O filme me lembrou demais “Preso na Escuridão" do Alejandro Amenábar lançado em 1997, ou seja, mesmo ano que este do David Fincher, e “Vanilla Sky” (2001) do Cameron Crowe que foi um remake americano do filme do Amenábar. Em “Preso na Escuridão”, César (Eduardo Noriega) é um homem órfão e dono de uma grande fortuna herdada dos seus pais. Mulherengo convicto, ele vive numa luxuosa casa e troca constantemente de namorada. De repente, ele é jogado em um estranho mistério psicológico depois que um acidente de carro lhe deixa com o rosto desfigurado e o coloca na prisão. No decorrer do filme vamos perceber que esse “estranho mistério psicológico” se trata de uma espécie de realidade paralela criada artificialmente. Aqui em “Vidas em Jogo” é o personagem Nicholas Van Orton (Michael Douglas) que vai ser inserido neste mesmo tipo de realidade paralela. Ele é um banqueiro milionário que ganha de presente do seu irmão Conrad (Sean Penn) um cartão que lhe dá acesso a um divertimento incomum, organizado pela empresa Serviços de Recreação do Consumidor, que seria exatamente essa viagem onírica. Ele entra na brincadeira consciente, mas acaba confundindo vida real e fantasia. Então a pegada dos dois filmes é muito parecida. Talvez o que este tem de diferente é ele ser um thriller de ação bastante movimentado que faz com que as 2hs de filme passem rapidamente. É meio previsível mas é um bom filme que prende a atenção.

24.3.24

“R.M.N.” - Cristian Mungiu (Romênia/França/Bélgica/Suécia, 2022)

Sinopse:
 
Matthias (Marin Grigore) volta à sua aldeia depois de deixar a Alemanha, onde trabalhou durante vários anos. A sua maior preocupação é Rudi (Mark Blenyesi), o filho pequeno que, aos cuidados de Ana (Macrina Bârlădeanu), sua ex-mulher, desenvolveu uma série de medos. Mas o seu regresso também se deve à necessidade de cuidar do pai (Andrei Finți) e à vontade de rever Csilla (Judith State), uma antiga namorada com quem tem esperança de reatar. Mas quando a fábrica de Csilla recebe trabalhadores estrangeiros, conflitos começam a surgir, desequilibrando as relações entre os habitantes da aldeia.
Comentário: Cristian Mungiu é um cineasta romeno de quem assisti ao ótimo "4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias" (2007) e ao mediano “Além das Montanhas” (2012).
Segundo Leonardo Sanchez da Folha de SP, “’R.M.N.’, um acrônimo para Romênia, acompanha os eventos que se passam numa cidadezinha do país dias após a contratação de imigrantes do Sri Lanka pela fábrica de pães local. O anúncio de vagas decorava casas e o comércio havia semanas, mas o salário-mínimo não atraiu moradores locais, o que levou a dona da panificadora a trazer gente de fora. É o suficiente para uma verdadeira insurreição tomar conta da cidade, com a maioria dos cidadãos inconformados porque ‘imigrantes estão roubando nossos empregos’ ou por causa dos ‘hábitos de higiene’ dos homens que agora manipulam o pão que eles comem diariamente. Um verdadeiro show de horrores xenófobo. O curioso, no entanto, é que a aversão ao estrangeiro vem justamente de uma cidade que está sem mão de obra por tanto exportar seus jovens a países como Alemanha e Espanha e que vive em harmonia com uma boa porção de húngaros que há décadas cruzam a fronteira. Eles também insistem em aprender alemão e são terrivelmente cristãos – mas até o padre compra a briga pela ‘proteção’ daquela bolha de pele clara e tradições ultrapassadas. ‘Eu também vejo romenos pedindo esmola nas ruas da França’, diz um francês que está de passagem e fica inconformado ao ouvir que os três cingaleses vão levar miséria e violência à cidade, escancarando a hipocrisia do discurso. É um filme que capta o mal-estar de uma Europa cada vez menos globalizada e cada vez mais fechada dentro de nacionalismos e agendas populistas próprias, como a Guerra na Ucrânia tem mostrado”.
O que disse a crítica: Claúdio Alves do site HD Magazine avaliou como bom. Escreveu que o filme é “um robusto grito de raiva contra a xenofobia, (...) é obra de cinema político executado com rigor e formalismos frios. Cristian Mungiu mais uma vez nos mostra ser um dos grandes realizadores do século XXI, sua maestria da mise-en-scène um exemplo do melhor que se faz na onda do Novo Cinema Romeno”. Como ponto positivo ele salientou “a fotografia de Tudor Vladimir Panduru que, sem descurar os registos realistas que Mungiu tanto ama, encontra qualidades reminiscentes da pintura viva. Através da sua câmara, a paisagem rural torna-se num mural de Bruegel. Em termos mais específicos, fica o aplauso para toda a sequência da reunião comunitária”. Como pontos negativos ele disse que “Matthias é um personagem muito limitado, apesar de personificar um tipo de masculinidade bem desmantelada pelo texto crítico. Quiçá ‘R.M.N.’ beneficiasse de um roteiro que lhe prestasse menos atenção e investisse mais tempo nas figuras sistematicamente marginalizadas pelas estruturas sociais e narrativas”.
Luiz Oliveira do site Metrópolis achou excelente. Disse: “’R.M.N.’ passa bastante tempo explorando as rotinas e os conflitos de vários personagens, é o retrato de uma comunidade e um tempo, não se limitando apenas a visão de um protagonista. O canvas em que o diretor e roteirista pintam é vasto e pessimista. Pois se o cenário político continua sem solução, não será Mungiu a fazê-lo, e nem precisa, tão engajante é este olhar no espelho que ele provoca. Em um dos muitos conflitos com que Matthias tem de lidar, ele leva seu pai para fazer uma ressonância magnética de sua cabeça. As imagens do interior da cabeça de seu pai, salvas no celular, hipnotizam Matthias. É dentro de nossas cabeças, afinal, que surgem nossa oposição ao ‘outro’”.
O que eu achei: Cristian Mungiu é atualmente um dos mais reconhecidos realizadores do denominado Novo Cinema Romeno. Vi dele apenas dois filmes: o ótimo "4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias" (2007) – que é um filme ambientado na Romênia no anos finais do ditador comunista Nicolae Ceauşescu no fim da década de 1980, e conta a trágica história de duas estudantes, colegas de quarto no alojamento universitário, que tentam praticar aborto ilegalmente – e o mediano “Além das Montanhas” (2012) – baseado em fatos reais ocorridos na Romênia em 2005, sobre duas moças que são criadas juntas em um orfanato na Romênia, elas se apaixonam mas se separam após uma delas resolver ir para a Alemanha enquanto a outra passa a viver em um convento sob severas regras religiosas. “R.M.N.” (2022), que é um acrônimo para Romênia, é talvez o mais interessante deles. É sobre a intolerância e o preconceito dos habitantes de uma pequena aldeia na Transilvânia para com três imigrantes que vem do Sri Lanka trabalhar numa empresa da cidade. Esses imigrantes vão parar lá justamente porque os habitantes locais não se interessaram pelos salários oferecidos, alegando poder conseguir salários melhores indo trabalhar no estrangeiro. É dentro desse paradoxo que surge uma onda de indignação racista. O roteiro inteligente mistura a beleza estonteante do lugar, com suas belas paisagens com neve, servindo de pano de fundo para acontecimentos sinistros. Até as legendas coloridas do filme são interessantes mostrando as falas em romeno numa cor, as falas em húngaro numa segunda cor e os demais idiomas numa terceira. É um filme complexo, violento e, ao mesmo tempo, visualmente lindo, que vale ser visto.

19.3.24

“Elementos” - Peter Sohn (EUA, 2023)

Sinopse:
O filme se passa na Cidade Elemento, um lugar onde os habitantes do fogo, água, terra e ar vivem em harmonia. Faísca, uma jovem impetuosa do elemento fogo, faz amizade com Gota, um garoto sentimental e divertido do elemento água, que segue o fluxo das coisas. Ele desafia suas crenças sobre o mundo no qual vivem.
Comentário: Trata-se de uma animação da Disney/Pixar. A história é a seguinte: Faísca e Gota são dois moradores da cidade Elemento. Apesar de serem verdadeiros opostos, os destinos dos protagonistas de fogo e água se cruzam após um incidente. Agora, os dois devem aprender a lidar com as diferenças para superar os desafios e salvar a loja da família de Faísca, principal conquista de seus pais.
Luísa Silveira do site Tech Tudo nos conta que a cidade Elemento é um lugar onde “os seres de quatro tipos - ar, terra, fogo e água - vivem em harmonia. Porém, eles respeitam a regra de não se misturar. Há alguns anos, os pais de Faísca chegaram ao local, como imigrantes, lutando por uma vida melhor. Aos poucos, montaram uma loja e conseguiram sustentar a filha única, que agora deve seguir os passos do pai na administração do negócio de família. Tudo muda quando Gota aparece no local e, sem querer, coloca em risco a loja que será de Faísca. Aos poucos, os dois se unem para reverter os problemas, que não afetam apenas a família da protagonista [Faísca], mas todos os habitantes da cidade. Nesta missão, eles percebem que têm muito mais em comum do que acharam e que a vida pode ser muito mais diversa e bonita”.
“Elementos” concorreu ao Oscar de Melhor Animação, perdendo para "O Menino e a Garça".
O que disse a crítica: Luiz Santiago do site Plano Crítico avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Escreveu: “’Elementos’ não é um filme desprovido de alma. Ver os 4 formadores químicos [água, fogo, ar e terra] convivendo no mesmo espaço e uma trama emotiva juntando essas ‘criaturas’ é algo divertido e, com certeza, atingirá em cheio ao seu público-alvo. Mas a qualidade da obra não está no alto nível das produções da Pixar, que antes não precisava bater no peito e gritar sobre o quão visualmente bonitos eram os seus longas, porque isso todo mundo já sabe. A questão é que além de uma animação de primeira qualidade, tínhamos histórias inesquecíveis, com narrativa focada, desenvolvendo personagens de maneira a marcar gerações. Não é este o caso, no momento. ‘Elementos’ até me lembrou bastante ‘Mundo Estranho’ (2022), da Disney, que a despeito de seu visual estonteante, não conseguiu contar uma história que subisse uns degraus para cima de ‘um filme legalzinho’”.
Martinho Neto do Cinema com Rapadura gostou um pouco mais, avaliou com 3,5 estrelas. Ele disse: “A dura realidade é que ‘Elementos’ sofre uma cobrança excessiva por se tratar de um lançamento da Pixar. O visual da obra é algo deslumbrante, mas é tratado por muitos como ‘apenas obrigação’ do estúdio. E o roteiro, maior problema da produção, ainda é satisfatório e superior a diversos exemplares de outros estúdios, mesmo longe de promover uma revolução inesquecível como sempre se espera dos lançamentos da Pixar. Deixando essa pressão de lado e se atendo aos méritos do filme, trata-se de um romance para o público infantil agradável de se ver, com protagonistas cativantes dentro de uma alegoria sobre imigração superficial mas com boas intenções”.
O que eu achei: Assim como a maioria dos filmes da Disney e da Pixar, “Elementos” toca em temas universais e importantes para o público, dentre eles estão o respeito à diversidade, a importância da inclusão na sociedade, a convivência com as diferenças e o papel das relações familiares na vida das pessoas. É por aí que caminha a animação, feita com o primor visual já característico dos estúdios. Há também uma certa crítica à burocracia do serviço público e à falta de empenho na resolução de problemas que afetam áreas marginalizadas das grandes cidades. Mas não espere ver um daqueles desenhos que ficam na mente da gente por décadas. Este é até interessante mas não será inesquecível.

18.3.24

“Através de um Espelho” – Ingmar Bergman (Suécia, 1961)

Sinopse:
Karin (Harriet Andersson), seu esposo Martin (Max von Sydow), seu pai David (Gunnar Björnstrand) e seu irmão Minus (Lars Passgård) estão em uma ilha. Eles comemoram o retorno da jovem após ser liberada de um tratamento no hospital - ela sofre de esquizofrenia - e também o fato de David retornar da Suíça, após isolar-se para escrever seu novo livro.
Comentário: Ingmar Bergman é um diretor de cinema sueco famoso pela abordagem psicológica que ele dá a seus filmes. Já assisti dele 17 filmes, mas sua produção engloba em torno de uns sessenta.
Rubens Ewald Filho do site UOL Cinema nos conta que “apesar de ter ganho o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (por sinal, pelo segundo ano consecutivo) [este filme] ficou inédito nos cinemas brasileiros, esta que é uma das obras-primas do genial diretor sueco, primeira parte de um trilogia que foi chamada de ‘O Silêncio de Deus’ [alguns chamam de Trilogia do Silêncio]. Com apenas quatro atores (quase um filme de câmara, como um quarteto de cordas e a música que se usa é de Bach), um único lugar (uma ilha na costa sueca), ele faz uma meditação profunda sobre o sentido da existência humana. Sempre usando a perfeita fotografia de Sven Snykvist, exemplar em enquadramentos e uso da luz, ele nos envolve aos poucos no drama daquela mulher que, desesperada, busca refúgio no irmão (com quem tem um encontro [quase] incestuoso) e nos pequenos ruídos, que a levam até um sótão onde por trás da porta de um armário pensa encontrar Deus (ou seria uma aranha que a devora? Ou será que sabe de algo que os normais desconhecem?). O filme coloca a figura paterna do escritor (que pode ser ruim, mas é bem sucedido) também como de um homem frio e até cruel (que pensa em observar a filha e anotar os detalhes da doença para depois usar num livro), mas que pode fornecer a chave para encontrar aquele Deus a que todos buscam com tanto fervor: é o Amor, seria sua resposta. (Ele diz: ‘Deus existe no amor, qualquer tipo de amor, talvez Deus seja amor’). Sem fazer sermões, ou ser escandaloso, vemos quatro personagens desesperados em busca de uma resposta, vivendo na trágica ilusão humana de que se não existe Deus, é preciso criá-lo. Nada disso porém é óbvio, conforme o estilo sintético mas profundo do diretor. (...) O título deriva de uma passagem da Bíblia (Atos do Apóstolos aos Corinthios, XII 12) e foi rodado na ilha de Faro”.
O que disse a crítica: Demetrius Cesar do site Cineplayers avaliou com 4 estrelas, ou seja, excelente. Escreveu: “Entre embates verbais ríspidos, planos de tirar o fôlego e uma sobriedade de direção que fizeram o nome de Bergman figurar como um dos maiores do cinema, a trama segue seca, precisa e áspera. O diretor arranca, como de hábito, fenomenais interpretações dos atores. É um filme assustador, que fica na memória e causa enorme desconforto mesmo muito tempo depois de ser visto. Enfim, simplesmente essencial”.
Robledo Milani do site Papo de Cinema avaliou com 4 estrelas e meia. Disse: “Após ganhar seu primeiro Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1961 por ‘A Fonte da Donzela’ (1960), Ingmar Bergman bisou a vitória no ano seguinte com ‘Através de um Espelho’, derrotando concorrentes da Dinamarca, Espanha, México e Japão. Com meros e enxutos 90 minutos de duração, este impressionante estudo sobre a demência, as relações familiares e o ímpeto artístico como fuga da realidade é importante dentro da obra do cineasta também por ser o primeiro capítulo daquela que ficou conhecida como ‘Trilogia do Silêncio’, composta ainda pelos extraordinários ‘Luz de Inverno’ (1963) e ‘O Silêncio’ (1963), filmes que ficaram marcados pelo intenso olhar proporcionado sobre a crise de fé do homem moderno. Um capítulo arrebatador não apenas da cinematografia sueca, mas também na própria história cultural da humanidade”.
O que eu achei: Eu gostei. Não é do nível de obras como "Morangos Silvestres" (1957), "O Sétimo Selo" (1957), "Persona" (1966), "O Ovo da Serpente" (1977) ou “Sonata de Outono” (1978) - todas verdadeiras obras-primas -, mas é um bom trabalho, com estupendas interpretações, em especial da protagonista Harriet Andersson que encarna uma esquizofrênica. Não é um filme leve, longe disso, mas ele entrelaça com maestria religião, psicologia e psicanálise. O título do filme - “Através de Um Espelho” - faz referência a uma passagem bíblica do Capítulo 13 de I Coríntios, que diz algo como “Agora vemos através de um espelho e de maneira confusa, mas depois veremos face a face“, ou seja, ele se refere especificamente à Deus que a personagem de Karin acredita ter visto em determinado momento da trama. Dizem que Bergman era ateu, mas nesse filme ele deixa transparecer que talvez Deus seja um sentimento chamado amor.

17.3.24

“Ficção Americana” - Cord Jefferson (EUA, 2023)

Sinopse:
O autor Thelonious "Monk" Ellison (Jeffrey Wright) fica irritado depois que um de seus trabalhos não foi aceito pelas editoras e sua carreira parece estar estagnada já que sua obra não é considerada "negra o suficiente". Enquanto isso o livro “We's Lives in Da Ghetto”, de Sinatra Golden (Issa Rae), chega à lista dos mais vendidos, deixando o autor em crise ainda mais frustrado. Ao perceber o tipo de conteúdo que o público parece estar interessado, Thelonious decide escrever um romance satírico sob pseudônimo na intenção de expor as hipocrisias do mundo editorial.
Comentário: Cord Jefferson (1982) é um escritor e cineasta estadunidense nascido no Tucson, Arizona. Filho de mãe branca e pai negro, seu avô materno ficou chocado com a escolha de sua filha de se casar com um homem negro e excluiu ela e seu neto de sua vida. Os pais de Jefferson se divorciaram quando ele tinha 14 anos, após o primeiro ano do ensino médio. Ele trabalhou como escritor, produtor, editor e consultor de diversas séries. Sua estreia na direção de longas-metragens se deu com este filme - “American Fiction” (2023).
Jorge Roberto Wright do site Meu Valor Digital nos conta que o filme “é baseado no romance ‘Erasure’ [Apagamento] de Percival Everett, de 2001, o [enredo] segue um professor-romancista frustrado que escreve um livro estranhamente estereotipado por despeito, apenas para que seja publicado e receba fama e aclamação generalizadas. [Isso porque] o autor Thelonious ‘Monk’ Ellison (Jeffrey Wright) fica irritado depois que um de seus trabalhos não foi aceito pelas editoras e sua carreira parece estar estagnada pois sua obra não é considerada ‘negra o suficiente’. Enquanto isso, o livro ‘We’s Lives in Da Ghetto’ [Vivemos no Gueto], de Sinatra Golden (Issa Rae), chega à lista de mais vendidos, deixando o autor em crise ainda mais frustrado. Ao perceber o tipo de conteúdo que o público está interessado, Thelonious decide escrever um romance satírico sob pseudônimo na intenção de expor as hipocrisias do mundo editorial”.
O cineasta, que começou sua carreira como jornalista, declarou que há uma percepção restrita sobre como é a vida negra e sobre as histórias que as pessoas esperam que elas contem. Então, quando ele começou a trabalhar com o cinema, ele achou que se libertaria disso, só que não.
O filme concorreu ao Oscar nas seguintes categorias: Melhor Filme, Melhor Ator (Jeffrey Wright), Melhor Ator Coadjuvante (Sterling K. Brown), Melhor Roteiro Adaptado (Cord Jefferson), Melhor Trilha Sonora (Laura Karpman). Levou o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado.
O que disse a crítica: Marcelo Müller do site Papo de Cinema avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Escreveu: “Desde que se tornou uma espécie de mantra repetido na nossa contemporaneidade, o tópico ‘diversidade’ também virou uma comodity valiosa. Os mecanismos capitalistas compreenderam a demanda crescente e fomentam a oferta para satisfazê-la, assim produzindo fenômenos de massa que muitas vezes perdem em contestação por conta da intenção mercadológica. Mas, numa realidade como a nossa, é possível atingir qualquer alcance maior se ignorarmos as lógicas de mercado? Ou, por menor que seja a ressonância esperada, sempre estaremos submetidos às engrenagens do capitalismo, cuja tendência é embalar os discursos para consumo?”. Müller acredita que “’Ficção Americana’ poderia se embrenhar mais entre as camadas da representação, questionando realidade, imaginação e invenção, uma vez que estamos falando de um filme exatamente sobre o ato de criar”. Para ele, o personagem “Monk [é apresentado] como um homem ora correto, ora absolutamente equivocado, mas [o filme] não mergulha nessa sua ambivalência. É um filme bonitinho sobre assuntos espinhosos, uma comédia inquisidora, mas contemporizadora demais”.
Guilherme Jacobs do site Chippu avaliou com 3,5 estrelas. Disse: “’Ficção Americana’ claramente defende uma gama maior de narrativas negras, mas em momento algum somos levados a acreditar que Monk está 100% certo em seu descarte do gueto, das ruas e da violência. Essa é, afinal, a vida de muitos negros. Com exceção [de uma única cena] (...), Jefferson não explora as contradições fascinantes levantadas por sua obra e seu protagonista, mantendo as (boas) piadas apenas na superfície. O humor nunca corta fundo demais. Por isso, a conclusão metalinguística, uma que admite a dificuldade de finalizar o próprio filme, por mais curiosa e excêntrica que seja, ainda decepciona. Ela é embasada nos dilemas profissionais de Monk e em questões não resolvidas levantadas por Jefferson, e portanto falha na hora de oferecer resolução (ou até se apoiar na falta dela)”.
O que eu achei: Uma vez ouvi um desses pensadores contemporâneos dizer que quando a Natura decide criar produtos autossustentáveis vendidos em embalagens recicláveis ou a Dove resolve que agora os seus produtos são “para todo tipo de mulher” isso surge, menos motivado por uma preocupação direta com o meio ambiente e com a diversidade e mais por verem, dentro de uma lógica de mercado capitalista, uma comodity, ou seja, algo para ganhar dinheiro em cima. Lembrei muito disso quando vi esse filme. Afinal as editoras e mesmo o cinema também já entenderam que certos assuntos dão ibope pois há muita gente no mundo preocupada com determinadas questões. O interessante aqui é que, mesmo sendo um assunto sério e complexo, o filme é revestido de humor, tornando tudo mais leve e engraçado. O personagem principal, que é um escritor negro, está com sua carreira estagnada pois sua obra não é considerada “negra o suficiente”. Enquanto isso, a romancista negra Sinatra Golden estoura em vendas e fama lançando um livro estereotipado que todo mundo quer comprar. O filme, como disse a crítica, ao mesmo tempo que defende uma gama maior de narrativas negras, não se aprofunda tanto e nem apresenta soluções, mas levantar essa questão com tanta leveza já me parece um grande feito. O final, aliás, não poderia ser melhor. Não quero dar spoiler aqui, mas vale prestar muita atenção nos três finais possíveis que são sugeridos pelo escritor para um cineasta branco que vai adaptar para o cinema uma de suas obras. Essa finalização - que é também o final do próprio filme que estamos vendo - é tragicômica. Uma sátira fresca, inteligente, perspicaz, incisiva e afiada que vale ser vista.

10.3.24

“Sob Suspeita” - Sidney Lumet (EUA/Alemanha, 2006)

Sinopse:
O mafioso Jackie DiNorscio (Vin Diesel) é preso sob a acusação de tráfico de drogas. Ele se recusa a testemunhar contra seus antigos companheiros da família Lucchesi, pois não quer dedurar amigos que tanto ama. Quando um promotor ambicioso o traz de volta ao tribunal, ele próprio decide se defender, sem a ajuda de um advogado. Isso é inicialmente visto com descrença, mas a sua marcante presença e seu conhecimento da lei podem mudar o rumo do julgamento.
Comentário: Sidney Lumet (1924-2011) foi um cineasta americano que dirigiu mais de 50 filmes. Assisti dele apenas um chamado "Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto" (2007), excelente por sinal. Desta vez vou encarar “Sob Suspeita” (2006), o penúltimo filme rodado pelo diretor.
Daniel Fontana do site Formiga Elétrica nos conta que o filme é “sobre a história real do julgamento federal mais longo [dos EUA], envolvendo múltiplos acusados da máfia italiana. O personagem principal desse episódio singular foi o mafioso Giacomo “Jackie Dee” DiNorscio, que optou por fazer sua própria defesa durante os 21 meses em que foi um dos réus na corte, mesmo não tendo nenhum tipo de instrução em direito, nem mesmo estudado muito na vida. Parece um papel bastante atraente para qualquer ator, e ele acabou caindo no inesperado colo de Vin Diesel. (...) Consta no IMDB que sua presença foi uma indicação do verdadeiro Jackie DiNorscio, que morreu durante a produção do filme. (...) O filme começa com um atentado fracassado contra DiNorscio, em sua própria casa e cometido por seu próprio primo. O caso complica sua condição de liberdade condicional, pois ele se nega a acusar o culpado. Pego em flagrante numa transação de drogas, é condenado a uma pena de trinta anos. O promotor lhe oferece um acordo em troca da redução da pena, pois ele e muitos dos seus colegas criminosos serão julgados ao mesmo tempo, graças à lei federal R.I.C.O., que prevê condenações baseadas em acusações de conspiração. Jackie, que já havia evitado delatar seu primo, se nega a ajudar e passa pelo mesmo processo com os outros. A diferença é que ele havia demitido o advogado e assume sua própria defesa como a lei do Estado permite. Debochado e sem muito a perder, sendo o único do grupo que já cumpre pena por outro crime, o personagem procura ganhar a simpatia dos jurados como pode, mesmo que acabe atrapalhando o trabalho dos verdadeiros advogados”.
Para se parecer com o mafioso, Vin Diesel precisou ganhar mais de quinze quilos, além de se submeter a horas de maquiagem.
O que disse a crítica: Silvio Pilau do site Cineplayers avaliou com 3,5 estrelas, ou seja, bom. Escreveu: “Além de se tratar de uma história real, a narrativa é construída de forma a fazer o espectador ficar do lado de DiNorscio e sua equipe, esperando por um veredito de inocente. De certa forma, o vilão do filme é o promotor. É uma abordagem que pode causar repulsa a alguns, mas que encontra sua justificativa quando se analisa que o filme nada mais é do que a visão dos próprios criminosos sobre o caso. Lumet jamais atesta o fato de os réus estarem corretos em suas atitudes, apenas conta a história a partir do ponto de vista deles. (...) ‘Sob Suspeita’ está longe de ser uma obra-prima, mas não deixa de ser reconfortante ver o responsável por clássicos como ‘Doze Homens e uma Sentença’, ‘Serpico’ e ‘Um Dia de Cão’ realizar, mais uma vez, um filme realmente digno de recomendação”.
Gilberto Silva Jr. do site Contracampo gostou muito. Segundo ele, neste filme Lumet subverte alguns princípios básicos de seus filmes anteriores já que, desta vez, o protagonista é um mafioso que nunca deixa de ser apresentado como criminoso e a quem não se procura escamotear os delitos que cometera no passado, justamente o oposto do herói ‘lumetiano’ clássico. Outra surpresa foi ele escalar Vin Diesel, astro de filmes pouco valorizados, no papel principal, sendo que nos anteriores ele sempre optou por atores virtuosos e consagrados como Al Pacino e Paul Newman. Sobre o filme em si ele diz: “nada supera a coragem de se retratar de forma gloriosa, quase catártica, a absolvição de um bando de mafiosos perigosos, por um júri declaradamente de saco cheio. A sequência da saída do tribunal é igualmente inspirada e debochada e antecipa brilhantemente a conclusão de um filme que beira o niilismo ao sugerir que, dentro do atual estado das coisas na sociedade americana, o último bastião da preservação dos valores tradicionais da honra e da família estariam justamente nos criminosos”.
O que eu achei: O filme se baseia numa história real ocorrida nos anos 80 nos EUA, de um mafioso chamado Jackie DiNorscio que, após pegar 30 anos de prisão por tráfico de drogas, demite seu advogado e, sem muita instrução em Direito, resolve se autodefender. É um filme de tribunal com bastante falatório que ficou muito prejudicado pela péssima versão dublada que assisti no streaming da Amazon Prime. Outro ponto negativo foi ver Vin Diesel no papel principal. Dizem que Sidney Lumet o chamou após o próprio mafioso dizer que gostaria desse ator lhe representando. O interessante aqui é saber que o mafioso obteve sucesso nesse julgamento que é considerado um dos mais longos da história dos EUA. Conta-se que levou 21 anos para ser finalizado. O caso real ocorreu em agosto de 1985. As autoridades de Nova Jersey indiciaram Anthony Accetturo, Martin e Michael Tattiva, além de dezoito dos homens da família Lucchese que comandavam uma facção criminosa em Jersey, mas que tinha sede em Nova York. Essa foi a primeira vez em Nova Jersey que uma família inteira do crime organizado foi indiciada num único processo. O final - que não é um spoiler por se tratar de uma história real amplamente divulgada pela mídia - mostra Jackie DiNorscio cumprindo apenas 17 anos e meio dos 30 a que havia sido condenado, sem jamais cooperar com a Promotoria Federal contra o crime organizado. Ele simplesmente consegue a façanha de, com seu carisma, fazer o júri desconsiderar montanhas de evidências contundentes. Jackie morreu aos 64 anos durante a produção desse filme. É uma daquelas histórias em que a realidade dos fatos supera a ficção.

“Pobres Criaturas” - Yorgos Lanthimos (EUA, 2023)

Sinopse:
Victoria (Emma Stone) cometeu suicídio, mas algo muito inesperado aconteceu com ela. Graças à mente brilhante e controversa do cientista Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe), Victoria foi trazida de volta à vida passando a se chamar Bella Baxter. Agora, tudo o que ela mais deseja é descobrir o mundo. O que seu guardião não imaginava era que a jovem ressuscitada fugiria com um advogado (Mark Ruffalo) para uma dramática jornada de autodescoberta.
Comentário: Yorgos Lanthimos (1973) é um cineasta, produtor e roteirista grego. Já assisti dele 5 filmes: as obra-primas "O Lagosta" (2015) e “O Sacrifício do Cervo Sagrado” (2017), os ótimos “Dente Canino” (2009) e "A Favorita" (2018) e o bom “Alpes” (2011).
Desta vez, Lanthimos vai nos contar a história de Bella, uma personagem feminina grávida que se joga de uma ponte. Baseado no livro homônimo de Alasdair Grey que referencia o clássico “Frankenstein”, o filme mostra um cientista esquisito e brilhante chamado dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe), que encontra seu corpo e resolve fazer o experimento de transplantar o cérebro do bebê para o corpo da mãe e depois reanimá-la. O resultado é uma mãe-filha, que não é exatamente nem uma nem outra. Bella vai chamar o dr. Godwin apenas de God, o que vem a calhar, já que ela é a criatura e ele, o criador.
Fabiane Secches da Revista Cult nos conta que “O livro traz diferentes perspectivas e formas narrativas para contar a história (...): de desenhos anatômicos a mapas, passando por trechos escritos à mão. Ainda que a fidelidade à obra original não seja critério de aferição de qualidade de uma adaptação, Lanthimos, com a ajuda do roteirista Tony McNamara, consegue transpor para a tela esses elementos de forma integrada e harmoniosa. A única perda significativa é que Bella, no romance de Gray, também poderia ser lida como uma representação da Escócia como era vista pelo autor. Já Lanthimos escolheu a Inglaterra como ponto de partida de seu ‘Pobres Criaturas’. (...) Há outras referências importantes, sendo a mais óbvia ‘Frankenstein’ (1818), de Mary Shelley. Dessa vez, no entanto, a criatura é uma mulher. E essa diferença é explorada com complexidade pelo diretor e por Emma Stone, que está impecável no papel”.
Secches também nos conta que “em uma das premiações que recebeu pelo papel, Emma Stone disse que considera o filme uma comédia romântica: Bella se apaixona pela vida, e isso é um caminho sem volta. Descobrimos que a mulher que vivia no seu corpo antes, Victoria, não conseguiu vencer os obstáculos que se colocaram em seu caminho. Casada com um homem possessivo e conservador, a vida para Victoria perdeu todo colorido que Bella agora enxerga no mundo e do qual quer desfrutar vividamente”.
O filme, como tudo o que Lanthimos faz, foge bastante do convencional. Ele já abocanhou diversos prêmios, dentre eles, Melhor Filme de Musical ou Comédia e Melhor Atriz em Musical ou Comédia (Emma Stone) no Globo de Ouro. Agora está indicado a 11 categorias do Oscar: Melhor Filme, Melhor Direção (Yorgos Lanthimos), Melhor Atriz (Emma Stone), Melhor Ator Coadjuvante (Mark Ruffalo), Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Trilha Sonora, Melhor Figurino, Melhor Design de Produção, Melhor Montagem, Melhor Fotografia e Melhor Maquiagem e Cabelo.
O que disse a crítica: Barbara Demerov da Revista Veja avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Escreveu: “A protagonista levanta questionamentos sobre individualidade, gênero e empoderamento sexual. (...) Bella vive uma dualidade entre se libertar dos homens e se submeter às vontades deles em busca de sua independência. Independentemente de pautas sociais, o filme constrói o retrato de uma jovem inexperiente enfrentando e reagindo aos dilemas do viver. O arco da personagem pode ser claramente visualizado por meio da atuação espetacular de Emma Stone. O modo de falar, os trejeitos e até o sotaque britânico (a atriz é norte-americana) são certeiros e mostram seu entusiasmo pelo papel. O estilo já característico de direção de Yorgos Lanthimos contribui para a criação de uma atmosfera fantástica. Por meio de recursos visuais e sonoros, como o uso de lentes ampliadoras e trilhas excêntricas, o espectador faz um verdadeiro mergulho à personagem e à trama”.
Bruno Botelho dos Santos do site Adoro Cinema avaliou com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Disse: “Temos [no filme] uma exploração intelectual da protagonista, quando conhece diferentes perspectivas do mundo real (em aspectos positivos ou negativos), assim como de sua sexualidade – que é uma parte fundamental do filme, desde sua descoberta até vivenciar livremente seus desejos. Em tempos que as redes sociais discutem se as cenas de sexo são necessárias ou não nas narrativas, Yorgos não tem pudor em mostrá-las e, mais importante, faz sem um olhar moralista ou fetichista sobre a protagonista feminina. (...) Inclusive, a escolha de ambientação do filme na Era Vitoriana não é uma mera coincidência no enredo, já que o período entre 1837 e 1901 no Reino Unido ficou marcado pelo conservadorismo, quando as mulheres eram discriminadas e marginalizadas socialmente”. E finaliza dizendo tratar-se de “ uma verdadeira odisseia deslumbrante e excêntrica”.
O que eu achei: Sabe aqueles filmes tipo “Mãe!” do Aronofsky que você ou ama ou odeia? É o caso deste. Eu, que sou fã de carteirinha de “Mãe!”, terminei de assistir a este “Pobres Criaturas”, com o mesmo encantamento do outro. Ambos, para mim, duas obras-primas. O enredo é como uma versão feminina de “Frankenstein”, no qual Willem Dafoe, excelente como sempre, interpreta algo como um Victor Frankenstein, o médico que cria diversos seres modificados como o pato-cachorro, por exemplo. Meu marido, na hora, lembrou do filme “A Ilha do Dr. Moureau”, inspirado no livro de H. G. Wells. A humana modificada fica a cargo da Emma Stone interpretar. Com um cérebro de criança num corpo feminino, a personagem convence nos trejeitos infantis que, ao longo da trama, vão evoluindo para um interesse sexual sem filtros. Há no filme muitas cenas de nudez e sexo, o que pode afastar parte da plateia, mas tudo isso corrobora com os temas aqui tratados como a pobreza, a prostituição, o feminismo e os relacionamentos abusivos. Creio que ela tenha grandes chances de ganhar o Oscar de Melhor Atriz. O visual do filme é outro ponto forte. Há diversas passagens bem deformadas registradas com lentes grande-angular olho-de-peixe. Parte dele é rodada em P&B e parte num colorido bem artificial, que combina fortemente com o realismo fantástico que o universo da trama nos apresenta. Atenção à pegada retro-futurista (elementos futuristas dentro de uma trama que se passa na era vitoriana), à trilha sonora bem elaborada, à cantora portuguesa Carminho interpretando o fado “O Quarto” e à cena impagável da dança entre Bella e seu amante (interpretado pelo Mark Ruffalo). Imperdível.

4.3.24

“Milagre em Milão” – Vittorio De Sica (Itália, 1951)

Sinopse:
Uma mulher (Emma Gramatica) adota um bebê abandonado em sua horta. Depois de sua morte, o garoto (Gianni Branduani) é enviado para o orfanato. Ao completar 18 anos, Totò (Francesco Golisano) vai para Milão, onde passa a morar num terreno ocupado por miseráveis, mudando a vida de todos com sua bondade.
Comentário: Vittorio De Sica (1901-1974) foi um dos mais importantes diretores e atores do cinema italiano. O site Wikipédia nos conta que como ator ele estreou em 1932, no filme “Dois Corações Felizes”. Como diretor sua estreia foi em 1939, com o filme “Rosas Escarlates”. Em 42 anos de carreira ele recebeu quatro prêmios Oscar de Melhor Filme Estrangeiro: em 1948 por “Vítimas da Tormenta”, em 1950 por “Ladrões de Bicicletas”, em 1965 por “Ontem, Hoje e Amanhã”, e em 1972 por “O Jardim dos Finzi-Contini”. Vi dele a obra-prima “Ladrões de Bicicletas” (1948) e o ótimo “Humberto D” (1952).
Segundo Nuno Gonçalves do site À Pala de Walsh, “’Milagre em Milão’ é o sexto encontro de De Sica e Cesare Zavattini, parceria artística que começou em ‘A Culpa dos Pais’ (1943). O binômio De Sica – Zavattini é um dos melhores exemplos de simbiose entre realizador e argumentista que marcam a história do cinema. Baseado no romance ‘Totò Il Buono’ de Zavattini, o filme de De Sica, em tom de fábula, começa com uma obra dos céus: Totò, um bebé milagrosamente nascido entre as couves do quintal da velha senhora Lolotta. Um anjo, um santo, mais tarde dirão. Após a morte da mãe adotiva, Totò é levado para um orfanato, onde no momento seguinte, como se de um truque de magia se tratasse, vemo-lo sair já como um jovem adulto. O seu único pertence, uma pequena bolsa, é roubada, mas ele acaba por travar amizade com o ladrão que em gesto de agradecimento a Totò por este lhe presentear de volta o objeto do furto ao qual se afeiçoou, cede o seu minúsculo aposento de latão para passarem a noite e se abrigarem do frio. Este pequeno acidente encaminha Totò até à sua futura comunidade (...)”.
Gonçalves diz que “’Milagre em Milão’ vive de uma certa aura onírica. (...) [Há] elementos que conferem ao filme um laivo de sonho, mas é também uma pista para o apelo maior de De Sica ao convidar cada um de nós para participarmos desse sonho e, também nós, projetarmos no filme os nossos próprios desejos”.
O filme foi premiado com a Palma de Ouro em Cannes e como Melhor Filme Estrangeiro pelos críticos de Nova York.
O que disse a crítica: Rubens Ewald Filho no Especial para o UOL Cinema avaliou o filme com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Escreveu: “Desde as primeiras cenas já parece que é uma fábula, com ‘era uma vez’ e tudo. (...) É curioso como De Sica, um diretor neorrealista, envereda aqui pela fantasia, buscando num milagre uma solução para os problemas sociais. Há pouco diálogo, atores amadores, momentos de pura poesia, talvez um pouco chaplinianos (como no começo, quando os pobres se unem todos em busca, literalmente, de um lugar ao sol de inverno). Na segunda parte, se torna ainda mais delirante, sem perder, porém, seu charme e encanto. Um belo e encantador filme, um sonho proletário”.
Pedro Roma do site Plano Crítico avaliou com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Disse: “Lembrado por sua sequência final, em que a classe operária chega ao paraíso da maneira mais lúdica possível (...) essa que é uma das obras-primas do diretor não foi ovacionada em Cannes somente por uma sequência ou duas. De estrutura impecável, roteiro primoroso e atuações muito carismáticas não há como evitar um sorriso ao vê-lo, sem se deixar cair para o lado panfletário, exagerado ou mesmo bobo é um filme que há mais de 50 anos vale a pena ser revisto”.
O que eu achei: Não espere nada do nível de “Ladrões de Bicicletas” (1948) ou “Humberto D” (1952). Este é um filme daqueles bem ingênuos, onde a bondade do protagonista Totò prevalece trazendo ao enredo um tom de fábula. Há muita criatividade e cenas divertidas, com montagens fantasiosas - que hoje em dia seriam produzidas facilmente com o auxílio da informática - feitas, em 1951, da forma mais rudimentar possível. O roteiro, assinado por seu habitual colaborador Cesare Zavattini, procura balancear as sequências de ameaça social com a típica e leve comédia italiana. É um filme para rir das próprias desgraças. Pode reunir a família na sala, crianças e idosos, que todos irão se divertir.